Para ser considerado aprofundado e complexo, o roteiro de um filme precisa seguir alguns padrões e regras. Os personagens principais, por exemplo, precisam de um arco. Ou seja: eles precisam terminar o filme diferentes de como começaram. Além disso, as situações e sequências descritas precisam ser verossímeis -- mesmo que o filme seja no espaço ou há vinte mil anos. Afinal, se não acreditarmos no que estamos acontecendo, não vamos levar o filme adiante.
No entanto, há um elemento que é ainda mais crucial para um roteiro cinematográfico: seus diálogos. Qualquer filme com uma boa história precisa de personagens que mostrem seus sentimentos e características unicamente pela fala. Afinal, explicar e demonstrar tudo por meio de diálogos é algo extremamente cansativo e expositivo -- em O Código da Vinci, por exemplo, Ian McKellen tem um monólogo insuportável no qual ele explica todos detalhes da trama, sem respiro.
Resumindo: diálogos bons são apenas aqueles necessários, que não se alongam sem uma necessidade veemente e que criam contexto para a trama, mostrando condição social ou emoções de seus personagens. É um trabalho dificílimo e que apenas alguns roteiristas de Hollywood conseguiram fazer com extrema perfeição -- de cabeça, lembro só de Coppola com Poderoso Chefão, Woody Allen com Annie Hall e Casablanca de Julius J. & G. Philip Epstein e Howard Koch.
Recentemente, porém, encontrei uma trilogia que consegue trabalhar a perfeição de seus diálogos com uma perfeição de fazer cair o queixo. São os filmes Antes do Amanhecer, Antes do Pôr-do-Sol e Antes do Anoitecer. São filmes já conhecidos pelo grande público e que caíram na minha mãe há apenas alguns meses atrás -- não tinha visto por preconceito puro e bobo, achando que seria uma comédia romântica qualquer. Mas que aula de roteiro de Linklater!
Cada filme da trilogia conta com suas características específicas, mas ainda assim vamos tratar o roteiro como um todo. Afinal, apesar de cada acerto ter sua particularidade em cada filme, ele continua sendo um ponto positivo que permeia as três histórias, de maneira quase invisível. Quem vê o filme nem percebe as questões em um primeiro momento: só embarca na história e nas atuações precisas de Ethan Hawke (Boyhood) e Julie Delpy (O Verão dos Skylab).
Encadeamento
O primeiro grande acerto da trilogia do Antes é o encadeamento das conversas. O ritmo, pra ser mais simples. Lado aposto da verborragia,conversas ritmadas estão presentes desde o início da trama. Não há atropelos no que é falado, não há exageros -- como no recente Um Limite Entre Nós, no qual o personagem de Denzel Washington fala sem parar, sem dar um suspiro à audiência. Há cadência no que Hawke e Delpy conversam, deixando um espaço ao espectador.
Isso, além de deixar a trama mais confortável, faz com que o filme fique muito mais natural na telona. Afinal, imagine que você está conversando com uma pessoa que se tornou o seu amor à primeira-vista. Você vai falar com ela sem parar? Não vai deixar a pessoa respirar nem um minuto? Linklater, obviamente, respeitou essa situação e criou uma trama que não economiza nos silêncios -- momentos, aliás, que não deixam de ser diálogos dentro desta narrativa!
Naturalidade
Com esse encadeamento das conversas, entra um outro elemento que já foi citado acima e que irei aprofundar aqui: a naturalidade dos diálogos. Em poucos minutos de filme, você embarca na sensação de que está dentro de uma história real, verdadeira. Se você estiver livre de outras distrações, pode até sentir que é uma mosca acompanhando um casal pelas ruas de Viena. E isso é algo que seria quase impossível dentro da proposta de Linklater para esta trilogia.
Afinal, não há nada além de conversas nos três filmes -- mais de cinco horas de filmes que são sustentadas apenas por diálogos. Para qualquer outro roteirista, seria quase impossível não cair em armadilhas e acabar soltando um ou outro diálogo mais artificial, que acaba por tirar o espectador da narrativa, mesmo que momentaneamente. Na trilogia do Antes, isso não acontece em momento algum nos dois primeiros filmes e apenas em uma ou outra vez no terceiro.
É algo digno de nota e que, quando bem analisados, se tornam uma aula de como deixar um diálogo natural, sem gesso.
Contexto
Ainda que naturalidade e encadeamento sejam pontos importantes e quase intrínsecos nos roteiros de Linklater, o grande ponto alto é o contexto: nós conseguimos entender a vida dos personagens apenas por meio de suas falas. Veja bem: nos dois primeiros filmes, há uma série de explicações sobre o que eles fazem, pensam, sentem. Afinal, este é o assunto de suas conversas, é descobrimento de um com o outro. Porém, o modo que cada um fala dá mais informações.
No primeiro filme, há pouco a que se explorar disso. São dois jovens adultos que estão se conhecendo numa cidade perdida. Aqui, o silêncio é uma arma poderosa da história para mostrar momentos de aproximação ou, ainda, constrangimento de um casal que ainda se conhece. Lembra da cena da cabine de música? Os dois entram em um espaço fechado e ficam em silêncio por vários segundos. Só há troca de olhares. Isso diz muito, sem precisar verbalizar nada.
No segundo, enquanto isso, quase não há silêncios. Os dois já se conhecem, mas estão há muito tempo sem conversar. O diálogo jorra da boca de Hawke e Delpy, sem cerimônias e sem deixar o público descontente -- afinal, ainda há a naturalidade e o encadeamento para sustentar a trama. E o melhor: o modo como eles falam vai mudando conforme a história vai avançando e, no final, já sabemos o que eles irão fazer antes mesma da cena de conclusão aparecer na tela.
É o terceiro filme, porém, que melhor usa este ponto de roteiro à seu favor. De uma maneira proposital, Linklater cria diálogos que se interrompem e que dividem espaço, pela primeira vez na trilogia, com coadjuvantes. As conversas são mais ríspidas e você entende o que está acontecendo na vida dos dois. Com apenas quarenta minutos de filme, e com poucas conversas, você já entende perfeitamente a vida de Jesse e Celine. Eles falam. Mas nem precisariam.
Juntos, esses três pontos forma um dos roteiros mais vivos e interessantes do cinema na última década -- dividindo espaço com Sideways, Beleza Americana e Fargo. Os excessos da história são poucos e o deleite do público, ao final, é certeiro. Afinal, independente de um final feliz ou não, as histórias são como a história de qualquer pessoa. Você se encaixa ali e vê os filmes com leveza. E no cinema, nada melhor do que isso: entrar num sonho e, de fato, vivê-lo.
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