Marcelo Gomes é um cineasta já consolidado em seu meio. Diretor por trás de Cinema, Aspirina e Urubus, Joaquim e Era uma Vez Eu, Verônica, ele sempre mostrou ter uma linguagem cinematográfica firme, complexa, profunda e, muitas vezes, com um pé no cinema documental. Só agora, porém, que o cineasta pernambucano entra de vez no mundo do documentário com o excelente Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, filme que também inaugura uma nova fase da Vitrine após perda de patrocínio.
O longa acompanha a rotina da pequena cidade de Toritama, no agreste pernambucano, e que é conhecida por ser a "capital do jeans". É de lá, afinal, que vem 20% do jeans comercializado no Brasil. O que poucos sabem, porém, é que Toritama é uma espécie de oásis do neoliberalismo, onde seus 40 mil moradores se acotovelam para encontrar trabalho na indústria da moda. "Lá existe um processo de escravização", afirma Marcelo Gomes ao Esquina. "[O funcionário em Toritama] é a vítima e o algoz ao mesmo tempo."
O que surpreende em Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, porém, não é o relato do cotidiano de Toritama. É, na verdade, a projeção que pode ser feita dessa pequena cidade para o resto do Brasil. Principalmente em um momento em que todas as relações trabalhistas estão sendo questionadas, seja no âmbito do trabalho infantil, da terceirização e até do desmonte da previdência. "Toritama não é o passado. Toritama é, na verdade, o futuro. Nós seremos uma grande Toritama", continuou o cineasta.
Abaixo, confira a entrevista completa com Marcelo Gomes feita em São Paulo, durante uma bateria de conversas do cineasta com veículos da imprensa.
Esquina da Cultura: O filme traz algumas questões sobre o hoje. Questões sobre precarização do trabalho, trabalho infantil, terceirização...
Marcelo Gomes: Quando cheguei em Toritama, comecei a pensar que seria algo parecido com a Inglaterra no início da Revolução Industrial. Quando as pessoas trabalhavam sem parar. Aí chego nas facções [como os moradores chamam as confecções de jeans em Toritama] e as pessoas dizem que estão felizes. Que adoram suas vidas. Aí levo uma rasteira maravilhosa! Não imaginava isso. As pessoas dizem que são donas de seu tempo, que têm liberdade. Aí passei a lembrar dos discursos do Reagan, da Thatcher, sobre o neoliberalismo nos anos 1980. Que a ganância é boa, que todo mundo é livre pra trabalhar o quanto quiser e puder, com suporte no consumo. É um processo de escravização. Você é a vítima e o algoz ao mesmo tempo. Aí percebi que Toritama não é o passado. Toritama é, na verdade, o futuro. Seremos uma grande Toritama.
Esquina: Os limites estão sendo borrados no mundo trabalhista.
Marcelo: Não existe mais trabalho das 9h às 17h. Não existe mais tarefas. Não existe mais o 'você deve fazer isso'. Agora é 'você pode fazer isso'. E aí, de repente, você está trabalhando 10 horas para comprar um casaco que você gosta. E aquele tempo não volta. Aquelas 10 horas não voltam nunca mais. E, no final, o retorno desse tempo da sua vida é um casaco. A gente não se questiona. Entramos num trabalho meio que automático. E é só.
Esquina: Parece que entramos num ciclo. No filme, vemos as pessoas em Toritama trabalhando para comprar pertences. Aí, quando chega o Carnaval, vendem tudo para viajar. E depois voltam para trabalhar mais pra comprarem o que venderam. E volta-se ao ciclo.
Marcelo: A meu ver, essa é a decisão mais inteligente. É um mundo efêmero que pode acabar a qualquer momento. Se um dia a China começar a produzir um jeans muito mais barato e isso vier pro Brasil, acabou Toritama. É preciso pensar em tudo isso.
Esquina: Você disse que foi surpreendido em Toritama. Senti isso no filme. Você chega com uma proposta introspectiva e acaba indo para outros caminhos. Como foi isso?
Marcelo: Este é meu primeiro documentário. Sempre admirei muitos estilos documentais, mas não queria seguir nenhum. Queria que o filme fosse poroso. Que Toritama nos indicasse o caminho. O fato estava lá, mas de que forma tratar aquele fato? Aí, no primeiro dia, fui falar com as pessoas. Elas deixavam que entrevistássemos, mas diziam que não iam parar de trabalhar. Aí percebi que era uma ideia maravilhosa! Ter um filme em que todo mundo está trabalhando, o tempo todo, sem parar. Foi uma decisão estética que tomei na hora, no lugar. É uma história, então, que começa pela memória, vai para algo mais observacionista, depois vai para as entrevistas, depois um momento em que me coloco no cinema e crio um meta-cinema. E aí, no final, senti que mostrei como o trabalho para eles é tudo. Consegui mostrar a essência de Toritama.
Esquina: E ainda tem a quebra da viagem dos moradores, quando você mostra o momento de lazer deles.
Marcelo: Sim. E foi algo complicado. Queria muito mostrar esse outro lado, mas não tinha como enfiar cinco pessoas estranhas, da minha equipe, na rotina de lazer desses moradores. Eles iam beber, se divertir, festejar. Foi aí que tive a ideia de fazer um pequeno workshop, dar câmeras nas mãos dos moradores e deixar que eles filmassem a rotina deles no Carnaval. Não sabia se ia dar certo, mas acabou que o material que eles trouxeram foi magnífico. Optei por colocar apenas a imagem de um dos moradores, mas havia algo muito especial no que eles filmaram. Algo muito, muito verdadeiro.
Esquina: E tudo isso foi decidido lá, então? Não havia um planejamento anterior para isso?
Marcelo: Não, foi tudo tratado de maneira porosa. Sem nenhuma norma, nenhuma rigidez. Eu gosto de fazer um cinema impuro, afetivo, intuitivo. Afinal, eu acho que a vida é impura. Então pra quê fazer um cinema que não seja impuro? Quis fazer um afresco de Toritama, longe de qualquer conceito. Deixei que o filme, em si, me guiasse.
Esquina: A ideia de fazer o filme também surgiu do nada, de um estalo? Ou teve alguma preparação?
Marcelo: Um dia eu tava passando por Toritama. Fazia muito tempo que não passava lá, apesar de saber que havia virado a capital do jeans. Mas eu não tinha entrado em contato com a grandiosidade dessa história. Que havia outdoors maravilhosos, enormes. E aí me animei quando soube que os moradores vendiam tudo para pular o Carnaval. No começo não entendi se era uma transgressão ao capitalismo, alguma coisa mais profunda. E gosta de falar sobre coisas que não entendo. E essa era uma questão que dava um nó na minha cabeça. Quis me encontrar nessa história, nesse novo agreste.
Esquina: As pessoas de Toritama te receberam bem logo de cara? Ou houve desconfiança?
Marcelo: Teve muita desconfiança. Queriam saber o motivo da filmagem, que eu era, o que queria. Desconfiavam que eu fosse algum espião da China ou coisa do tipo, atrás de segredos. Aí expliquei que era um filme para cinema. E eles não tinham interesse algum! Foi todo um processo. Mas, felizmente, logo as pessoas ficaram abertas, falaram muito comigo.
Esquina: Foi um processo feliz, então.
Marcelo: Em certa parte, sim. Mas eu voltava muito triste de Toritama. Não conseguia entender onde aquele processo iria parar. Fico feliz, hoje, por esse filme ser lançado em um momento em que estão sendo extintos vários direitos trabalhistas. Chega em um momento em que se fala mais sobre a extinção do Ministério do Trabalho, sobre ser autônomo, da uberização, extinção de direitos da previdência. E acho que o filme traz uns questionamentos interessantes: onde vai dar isso? Até onde vai o direito dessas pessoas? Quais são as sequelas que essas pessoas de Toritama vão ter? Onde a gente vai chegar com essa industrialização esdrúxula? Será que temos outros caminhos?
Esquina: Hoje estamos entrando em paranoias e discussões absurdas sobre trabalhar desde pequeno, desde 10 anos de idade. Está uma loucura.
Marcelo: O trabalho é a razão da vida. Mas surge uma das questões que o filme apresenta: você vive para trabalhar ou você trabalha pra viver?
Esquina: E achei interessante que você, em momento algum, julga o que as pessoas falam. Como lidar com isso?
Marcelo: Eu queria que as pessoas se sentissem livres para que falassem o que quisessem. Tem um momento em que uma senhora diz que 'pior é na África! Pior é morrer!'. Isso é o que ela acha. Se eu confrontasse essa opinião, eu reprimiria ela de dizer o que pensa, o que sente. Ela se sentiria coagida. Eu apresento o filme para que as pessoas refletissem sobre o que ela sente, não sobre o que eu acho, o que questiono.
Esquina: Qualquer filme é político, mas senti o seu um pouco mais forte nesse aspecto. O que você espera das reações que ele pode trazer?
Marcelo: O artista é o homem de seu tempo. A gente vive um momento em que temos que fazer filmes políticos. É o mundo que a gente vive e temos que reagir ao que tem no mundo. Espero que meu filme desperte questões filosóficas, questões da área trabalhista, da área da moda. Tudo isso para a gente imaginar um mundo melhor. Que é o que a gente quer! É o que os índios, que fundaram Toritama, quiseram ao chamar aquele lugar de "terra da felicidade"! Então, todo mundo quer isso. E é isso que, infelizmente, não é hoje.
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