Existem dois tipos de listas de livros: a dos lidos e a dos que se quer ler. Nunca vi, porém, uma lista de livros desistidos, abandonados. No Skoob até tem, mas não é o tipo de lista que se exiba por aí. Ela fica ali, como um lembrete de coisas inacabadas. Por isso decidi dividir o meu trauma de abandonar leituras. É uma autoexigência besta, mas eu detesto não terminar algo já começado. Vale para tudo, não somente para os livros. Mas falemos deles.
O último abandono foi Hemingway. Tentei ler o clássico O Sol Também se Levanta pela segunda vez. Nesta fui um pouco mais longe, cheguei, com certo esforço e boa vontade, ao capítulo VII – da outra não lembro nem se passei do II. Algo ali não deu liga pra mim. Não consegui me conectar com as angústias daquelas personagens entediadas e entediantes em Paris. Uma tristeza.
Essa situação de abandonar leituras me causa tanta coceira que lembro até hoje qual foi o primeiro livro que larguei mão: Spharion, uma ficção científica da Coleção Vagalume escrita por Lúcia Machado de Almeida. Eu devia ter uns treze anos e, mesmo adorando o tema, não aguentei chegar ao final. Parei na página 22. Esse trauma com Spharion me acompanha há mais de dez anos. Vinte e dois inclusive é, até hoje o número de páginas que uso como parâmetro para decidir seguir uma leitura.
Após esse episódio traumático, se sucederam outros livros e autores igualmente premiados e reconhecidos que foram jogados no meu limbo pessoal de leituras após a página 22 – o que não quer dizer que eu use essa métrica para todos os livros. No caso de Crime e Castigo, dado o tamanho do calhamaço, fui até a página 50 e fui fisgado. Só parei de ler 20 dias depois, quando terminei.
Em geral é difícil contestar a unanimidade, principalmente quando se fala de arte. Já fui acusado pelo crime de ter abandonado Garcia Márquez. Mas nem ele nem Hemingway estão sozinhos. Assim, lá vai uma (pequena) lista de livros e motivos pelos quais simplesmente deixei pra lá ou, pior, me iludi achando que voltaria a lê-los um dia:
Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Alexijevich é um que tento terminar desde 2016, quando usei esse livro como material de pesquisa para meu TCC na faculdade. A autora ganhou o Nobel de Literatura em 2015 pelo conjunto de uma obra que fala das angústias do mundo soviético - relatos impressionantes e cheios de emoção sobre o fim da Guerra Fria e de todo um ideal de nação que se esfarelava com a URSS. Mas em Vozes de Tchernóbil meu interesse resolveu passear em outras paragens quando tive a impressão de tudo ser muito repetitivo depois da página 200.
Não sentia mais a identidade daquele sofrimento – o que por um lado é real, afinal, o livro é um recorte da desilusão de todo um país outrora grandioso. Achei que era um desrespeito com as vítimas seguir pensando que tudo era uma coisa só e deixei o marca-páginas ali, na página 284. Tenho vontade de terminar, mas sigo sem forças para encará-lo – principalmente neste momento de pandemia por COVID-19 quando, só no Brasil, seguem morrendo mais de 1000 pessoas por dia e as autoridades daqui fazem o mesmo que as da URSS, transformando pessoas em CPFs e escondendo dados. Sendo assim, resgato meu primeiro marca-páginas, um desenho da Livraria Cultura no Conjunto Nacional em São Paulo.
Outra desistência antiga foi Introdução aos estudos literários, de Erich Auerbach, escrita muito profunda que trata de etimologia, formação de línguas latinas e traz um panorama sobre movimentos literários da Idade Média ao século XIXI. Comecei esse aqui numa época que tinha cismado de fazer uma segunda faculdade e me dedicar à vida acadêmica. Leitura fluida, tema que me atrai, mas só consegui virar as primeiras 88 páginas. Não fiz nem a segunda graduação nem terminei o livro. E lá estava, há quatro anos, um marca-página que eu nem lembrava que existia, recuerdo de Barcelona que trouxeram para mim. Resgatado.
Lembro apenas de mais três abandonos:
1- Mar Morto, de Jorge Amado: bem escrito como toda a grife de Jorge, o romance sobre a vida dos pescadores baianos ficou jogado em cima da estante por meses até ser devolvido para a prateira. Cansei de ilusões e resgatei hoje, na página 43, o marca-páginas que reproduz um trecho do afresco Juízo Final de Michelangelo. Trouxe da Itália como recordação e vou deixar o livro ali, quieto e interrompido para dias de mais disposição para com ele.
2- Diários da Presidência, Volume 1, de Fernando Henrique Cardoso, abandonado por conta do tamanho, ficava difícil de carregar na mala pra ler no metrô. Mesmo com letra miúda e quase mil páginas, parei na página 56. É uma visão romantizada do ex-presidente sobre fatos de seu governo. Não é ficção, mas está longe da autocrítica. Provavelmente eu me aventure a ler todos os volumes – um dia.
3- 007 contra o satânico Dr. No, de Ian Fleming. Faz tanto tempo que nem lembro onde parei. Mas esse foi abandono completo, nem marca-páginas deixei. É o mais chato dos livros de 007, mas deu origem a um dos melhores filmes (falo mais dele aqui).
Depois dessa operação de resgate dos meus marca-páginas chego à conclusão que preciso deixar pra ser cartesiano nas situações e ambientes que exigem isso de mim. Com isso não só dissipei essa energia de leitura parada, mas recuperei alguns itens da minha coleção de marca-páginas. Pior que abandonar um livro é acreditar que um dia será possível voltar a lê-lo, meses ou anos depois, de onde se parou. Burrice e arrogância que talvez nem esteja escrita.
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