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Foto do escritorTamires Lietti

Rodinha no Pé: Sobre "viajar bastante" e a questão do dinheiro












Eu costumo dizer que pra falar da relação entre ‘viajar’ e ‘ter dinheiro’, existem três termos que precisam sem considerados: prioridades, limitações e circunstância. Essa última pode ser substituída pela palavra "contexto". É relativamente fácil entender o que cada uma delas quer dizer dentro dessa relação.


Vou começar com o termo mais fácil, o menos complexo de reconhecer – apesar que muitos de nós só entendermos nossas limitações uma vez que nos desafiamos além da conta. Eu mesma experimentei isso. Viajar exige que a gente entenda até qual página a gente consegue ir. Até qual página seu corpo e reações fisiológicas conseguem ir. Até que página sua mente consegue ir.

Falando por mim, sou uma pessoa pouquíssimo limitada. Se precisar ficar sem banho, eu fico. Não gosto, mas fico. Minha rotina de alimentação é completamente adaptável e eu consigo ficar bastante tempo sem comer ou sentir um apetite indomável. Se precisar ficar dias com a mesma roupa, está ok também, não me desestabiliza. Obviamente, eu prefiro dormir quentinha e confortável, mas durmo em qualquer canto se estiver cansada, especialmente se tiver comigo um cobertorzinho que sempre faço questão de levar. Inclusive a sensação de casa que esse item me dá colabora um tanto pra minha adaptação em um caminhão qualquer ou barraca qualquer.


Consigo ir (ou não ir) ao banheiro em qualquer lugar também. Não costumo ficar doente (apesar que no Sudão peguei umas 20 viroses diferentes por conta do nível de higiene e perdi a unha do dedão por uma infecção que nunca consegui curar). Não tenho nenhum episódio de violência ou abuso no meu passado que me faça sentir um medo excessivo ou me coloque numa posição mais suscetível a gatilhos. Tenho sorte. Sou uma mulher brasileira, então claro que desconfio um tanto de lugares escuros e algumas vizinhanças, mas tenho segurança pra seguir se minha intuição me diz que tudo bem. Confio bastante nela.


Minha maior limitação quando viajo é o acesso à internet. Eu faço tudo remotamente então não posso de jeito nenhum desaparecer por um longo período de tempo. Isso me deixa extremamente ansiosa, a ponto de estragar toda a minha experiência.


Aconteceu recentemente em uma travessia por terra que fiz do Egito ao Sudão. A parada na fronteira que era pra ser de horas, foi de dias. A ansiedade de não poder acompanhar mensagens de trabalho, falar com a família (que ajuda muito a diminuir o desconforto físico ou emocional que algumas situações acabam trazendo) estragou completamente meu humor. Fiquei chata, deixei de aproveitar a “aventura” e perdi o foco nas coisas boas. Logo eu que amo uma boa aventura fora da rota! Eu já dei aula de inglês no meio do deserto, não tenho problema nenhum com isso. Verifico um canto silencioso pra me sentar e continuo a rotina. Preciso apenas de conexão. Minha limitação é poder ter contato com o mundo exterior, por motivos pessoais, profissionais e emocionais. Já reconheci isso e tento não a desafiar.


Entender as limitações é o primeiro passo. Aprender a respeita-las pode ser difícil, às vezes a gente precisa daquele perrengue inenarrável pra entender que “nunca mais” quer passar por isso. Mas seria inocente da minha parte isolar a descoberta das limitações do outro conceito que apresentei acima: as circunstâncias.


Vamos considerar um trabalhador CLT, por exemplo. A pessoa que tira férias anuais muito provavelmente não vai querer ir de caminhão pro Sudão durante esse período, certo? Nesse caso, um pacote all inclusive pro México seria uma ideia melhor. Um pai de família que economiza anos pra levar a família passear precisa considerar as limitações e vontade de outros seres humanos. Isso tudo influencia diretamente o quanto se gasta quando viajamos. Eu ir pra Disney é uma coisa. Eu ir pra Disney com três filhos pra garantir um sorriso no rosto é outra. Eu durmo no carro no estacionamento do parque se precisar. Mas e a pessoa que só tem aqueles 10 dias pra aproveitar e descansar, passaria por isso?


Topar aventuras e testar limitações é também uma questão de trabalho de campo. E esse trabalho de campo é irreal pra 99% da população brasileira que precisa de uma rotina 9h-17h pra comer, pagar boletos e fazer a vida. Então, não. Não é só sonhar. Não é só querer. Esse discurso é muito falho e vou sempre o criticar.


É difícil, inclusive, “largar tudo” e “sonhar” quando se vive com medo das contas simplesmente não fecharem. Quando não se tem acesso a impérios de família ou patrocinadores. Quando você precisa não só garantir o seu, mas também o dos seus. Foi experimentando isso na pele que eu entendi o quão limitante esse sentimento pode ser. Foi administrando minhas finanças entre o mundo real e o “viajar um tanto” que eu entrei em contato com a ansiedade inerente de quem depende apenas de si pra fazer tudo girar. Isso é a realidade de quase todos nós.


O último termo é um tanto quanto clichê, mas eu queria propor uma interpretação diferente pra ele. Quando digo que “é uma questão de prioridades”, não é dos exemplos que dei acima que estou falando. As pessoas que dependem da rotina 9h-17h não conseguem ser tão maleáveis com suas prioridades. A prioridade é garantir que tudo está pago e ativo nos 11 meses do ano e tentar garantir que aqueles mês off aconteça da forma mais funcional possível, e que caiba no bolso. A pessoa que precisa interferir financeiramente na família também pouco consegue dosar suas prioridades, elas são claras. São dos mais flexíveis que estou falando; daqueles que podem mais, graças a suas circunstâncias. Por isso digo que todos esses termos estão relacionados; pensar em um é pensar em todos.


Todos os meses que passo por aí preciso organizar minhas prioridades. Isso depende muito do quanto produzi no mês, que varia. Compro pouquíssimo. Gosto do dinheiro do mês ali, pra eu usar andando e existindo no exterior. Isso depois que todas as contas do dia 16 foram pagas – é a partir daí que eu vejo o que vai dar pra fazer no mês e o que não vai dar.


Se você tem condições de comer 4 refeições por semana em restaurantes badalados de São Paulo que te cobram R$400-500 depois do seu petit comite, muito provavelmente você se encaixa nesse grupo que pode redistribuir prioridades. Se você troca de iPhone toda vez que um modelo novo chega no mercado, pode ser que você também se encaixe nessa minoria. Em cima disso, fechamos o ciclo voltando pra questão das limitações. E se comer muito bem e ter é qualidade de vida pra mim? E se eu sou cozinheiro e alimento minha alma de conhecer esses restaurantes? E se eu preciso do último modelo de smartphone porque eu dependo 100% das funções de um aparelho top de linha pra trabalhar? E se viver assim é o que me faz feliz?


Por isso falar sobre dinheiro e viajar é tão complexo. Há tanto pra se considerar, tanto pra ver e vou além: há tanto pra se enxergar. O que a gente vê – principalmente hoje, na era das interações sociais online – muitas vezes não é o que a gente deveria enxergar. Eu tenho total ciência de que quem olha minha página no Instagram vê, mas não enxerga. O viajar – seja uma vez ou muitas vezes - se torna simples apenas para uma minoria que simplesmente não precisa pensar em dinheiro. Não precisa ponderar decisões. Não precisam remanejar prioridades porque conseguem atender a todas. Não precisam pensar em limitações porque muitas vezes – e na grande maioria delas - dinheiro desaparece com elas facilmente. Mas eu preciso e acredito que você leitor também. Nesse caso, não há segredo: entender prioridades, limitações e circunstancias, sempre. E planejar em cima delas.

 

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