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Foto do escritorTamires Lietti

Rodinha no Pé: Auschwitz nos mostra dores do passado de olho no futuro










Em fevereiro deste ano, a internet brasileira foi palco para inúmeras discussões a respeito do nazismo. Pensei por alguns dias sobre a pequenez da visão daquela figura pública, que mal conheço, a respeito da possível existência de um potencial partido nazista no país. Toda a comoção virtual que esse episodio gerou me fez entrar em contato novamente com a sensação impotente que senti ao visitar Auschwitz, na Polônia, há alguns meses. Decidi então escrever sobre ela.


No texto de alguns meses, narrei um pouco da experiência que tive em Prypiat, a cidade-fantasma que foi destruída pela tragédia de Chernobyl. Muitas vezes eu sou questionada a respeito de “qual foi o lugar mais impactante que já vi” ou como foram essas experiências em lugares “assim”. Acredito que quando as pessoas se referem a lugares “assim”, elas se referem a lugares com um background catastrófico, desses que arrepiam a espinha ou tocam as entranhas quando estamos fisicamente em contato com eles.

Foram muitas as vezes que me senti visceralmente tocada pela história de um lugar, muitas vezes em contextos menos intensos e mais cotidianos como uma mera sala de estar em uma casa singela em uma vila no interior do Egito. Eu consigo sentir bastante os estímulos emocionais de um local. Então, é claro que Chernobyl foi um passeio que ativou cada vertebra da minha espinha dorsal. A sensação de catástrofe é "indriblável" – se é que essa palavra existe – mas em Auschwitz essa sensação é cubicamente pior.


Logo ao entrar no local, passar pela revista de segurança e pegar o fone de ouvido, os letreiros velhos pintados com o que resta de tinta preta e um pouco de ferrugem chamam a atenção. Os dizeres moldados em alemão Arbeit Macht Frei (“o trabalho liberta”) parecem brincar com a ideia de tudo que o local representa. A sensação de confusão que o primeiro portão de Auschwitz causa acompanha qualquer visitante até o momento em que é possível sair de lá.


Auschwitz é mais que um museu a céu aberto, são as vísceras de atos colossais pautados no ódio ali, esperando para serem vistas, experimentadas, e fotografadas por seres humanos que possivelmente nunca vão conseguir dimensionar o ódio que aquele lugar testemunhou. Diferentemente do que aconteceu em Chernobyl, a catástrofe de Auschwitz foi planejada, propositalmente mantida, racionalmente arquitetada e minuciosamente mantida. Chernobyl foi um acidente, Auschwitz não; e isso impacta completamente a forma como se experimenta lugares “assim”.


Além das muitas fotos e dizeres adesivados nas paredes dos muitos corredores que hoje servem o ensinamento teórico dos anos de nazismo que o mundo viveu, a experiência em Auschwitz escala alguns níveis e não poupa em nada os que topam vivê-la.


Por lá, é possível ver (e aprender com) conteúdos gráficos e indigestos a respeito da crueldade exercida naqueles muitos metros quadrados. Atrás de “aquários” largos de vidros, estão amontoados de latas de Zyklon B, o pesticida usado nas câmaras de gás, pilhas de óculos, tapetes de reza, utensílios de cozinha, e malas artisticamente identificadas. Restos de muitas e muitas vidas que por lá passaram e por lá ficaram. Os nomes escritos em tinta branca nas maletas de couro, depois de Auschwitz, viraram número. Acredito que a organização em pilhas e amontoados ajudem a dimensionar o não-dimensionável. Dos muitos montões que é possível ver, a pilha de sapatinhos de criança e o corredor de cabelo humano são os que formam uma memória fotográfica em minha cabeça ao escrever sobre eles. Foi extremamente impactante pra mim poder ver de frente uma representação objetiva parcial da quantidade de seres humanos que foram aniquilados em Auschwitz.

Ao sair do hall dos “aquários”, há muito mais que se ver e digerir. Não fica mais fácil, pelo contrário, o peito fica cada vez mais aparvalhado. Os muitos metros de arame farpado enferrujado, o pátio de fuzilamento, os banheiros insalubres e mal arranjados e os halls de autopsia e experimentos clínicos (99,9% das vezes não consentidos) tornam o caminhar por Auschwitz cada vez mais indigesto.


É possível de fato entrar na parte necroterial das câmaras de gás e ver os arranjos que eram feitos para queimar e descartar os muitos corpos que Auschwitz produziu. Se é que é possível espremer um pouco mais nessa experiência triste e desconfortável, a parte anexa do campo de concentração – oficialmente conhecida como Birkenau - fica há alguns poucos minutos de carro de Auschwitz I. O que se vê ao descer por lá se assemelha a distribuição de uma fazenda lotada de estábulos velhos feitos de madeira velha e úmida. Só que os estábulos eram casa para pessoas, centenas delas. Os celeiros de Birkenau acomodavam beliches de madeira onde os prisioneiros dormiam a seco. Ao lado do amontoado de camas, alguns buracos enfileirados no chão eram usados de banheiro. Não há mais nada no local além desses dois “itens”.


Entender e dimensionar a esquematização e o funcionamento de um local como Auschwitz vai além de entender a história por trás do local. É extremamente desafiador para um ser humano mediano entender como alguém mora em uma casa cujas janelas estão logo de frente para um incinerador de corpos humanos que funciona 24 horas por dia sob a sua ordem. Ao contrário da tragédia de Chernobyl, que foi resultado de um movimento acidental misturado por uma certa ignorância ao redor de algo novo, e talvez, no máximo, uma pitadinha de arrogância, Auschwitz é resultado da força do ódio que segrega, cega e mata.


Pelos livros, documentários e filmes produzidos em torno das miríades do nazismo já fica muito difícil trazer para a consciência o poder desse ódio. Estando lá, essa sensação triplica. É impressionante o poder do local de engatilhar reflexões a respeito da nossa própria humanidade e da perigosa falta dela. Recomendo a visita a todos que passam pela Polônia, mas Auschwitz não é turismo. Infelizmente, é realidade.

 

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