Escrito por Chico Buarque no início dos anos 90, Estorvo é um livro que deixa gosto amargo na boca, mais pela sua quase trama do que pela narrativa precisa e, por vezes, inovadora. Pode ser considerado um "livro quase". É quase um thriller, pois possui elementos geradores de tensão, suspense e empolgação. Ao contrário, não desenvolve nenhum. É quase um drama policial pois envolve investigações, contraventores e tráfico, mas também não amarra nenhuma dessas finas linhas. Não é só amargor que fica na língua: é também a mesma fome que sentimos em restaurantes que servem um minúsculo prato principal.
Nas pouco mais de 150 páginas vemos o um anônimo vagando pelo Rio de Janeiro após fugir de um misterioso homem que toca sua campainha. A possibilidade desse estranho ser um velho conhecido é o estopim para que o personagem passe por estranhas situações, quase sempre relacionadas às suas memórias de infância: um sítio hoje ocupado por traficantes, um sentimento incestuoso pela irmã rica, uma relação quase que homossexual com um amigo mais velho.
Apesar de ser fundado em reminiscências de outrora, a linguagem usada por Chico nas construções – que é justamente o charme de Estorvo – são as suposições futuras da cabeça da personagem colocadas como um presente possível. O estilo narrativo do livro sempre é um devaneio, como se uma névoa onírica cheia da brisa da praia perpassasse todas as cenas. Quem já ouviu a excelente Não sonho mais, do mesmo Chico, sabe do que estou falando.
Há também um quê de Uma Rua de Roma (você lê a crítica AQUI), mas a ausência de trama faz de cada capítulo um esquete. A repetição de situações e figuras canhestras que se cruzam - quase que de forma despretensiosa, pois não possuem objetivos claros e definidos - transforma a narrativa em algo circular, quase cíclico.
A falta de explicações para o homem que causa todo o desenrolar do livro - quem era, qual o motivo da busca e da fuga e por que não apareceu novamente – é só uma de todas as possibilidades não concretizadas de Estorvo, uma crônica de estranhezas em tamanho grande, mas nem por isso menos prazerosa de se ler.
O amigo foi generoso com Estorvo. Ainda estou pensando como recupera o tempo perdido com essa obra, onde o título faz todo sentido.