Annie, apesar de ainda estar na adolescência, já viu muito na vida. Sua mãe biológica a torturava e, ainda por cima, era uma serial killer que matava crianças no porão de casa. A coisa só chegou ao fim quando a menina a denunciou para polícia, fazendo sua vida também virar de cabeça para baixo. Para se proteger, passou a ser chamada de Milly. E, para tentar socializar, foi entregue para uma simpática família, formada pelo pai psicólogo, a mãe dona de casa e a filha adolescente e colega de turma na nova escola.
Essa é a premissa geral do suspense psicológico Menina Boa, Menina Má, de Ali Land. Seguindo receita parecida com os recentes sucessos dos "thrillers domésticos", como A Garota no Trem, A Garota Exemplar e Quem Era Ela, a obra se prende aos aspectos rotineiros da protagonista, mas com uma boa dose de suspense, thriller e desenvolvimento psicológico de Annie/Milly -- que vai ser tratada pelo novo nome, aqui no texto, para facilitar entendimento. São convenções do subgênero, mas que funcionam na história.
Menina Boa, Menina Má, porém, não segue apenas pelo lado burocráticos dos thrillers domésticos. Há muitos elementos sensíveis e originais em seu conteúdo. A começar pela diferente -- e, inicialmente, estranha -- forma que a autora Ali Land escreve sua história. Ao invés de um encadeamento de frases curtas e longas, a autora opta por usar orações coordenadas em grandes número, com pequenas frases se entrelaçando entre si. No começo causa uma sensação de distanciamento, mas logo assume um caráter de fluxo de pensamento. É uma opção que engrandece a narrativa e a construção de Milly.
Aliás, outro ponto a ser ressaltado é o excelente trabalho de construção psicológica da personagem principal. Lembrando, em partes, o que o brasileiro Gustavo Ávila fez em O Sorriso da Hiena, a autora consegue criar a personalidade de Milly em camadas. Um trabalho difícil de ser feito, que exige muita paciência do leitor e de quem conta a história, mas que funciona como uma bomba conforme a trama avança e a personagem vai ganhando mais contornos. É gostoso e recompensador ler a trama como um todo.
Ainda que haja alguns exageros de tramas paralelas -- como uma amizade que não chega a lugar algum e uma história envolvendo a mãe adotiva que não consegue mostrar relevância dentro do contexto --, o livro também desperta uma ambientação natural e claustrofóbica para quem está lendo. Difícil evitar um desespero genuíno em algumas partes e tentar, de algum modo, interferir no que está se desenhando nas páginas do livro. Resultado, novamente, de uma escrita forte e real da autora Ali Land.
Vale ressaltar, também, a boa construção da personalidade de alguns dos personagens satélites. A mãe adotiva, Saskia, é, surpreendentemente, uma das mais complexas dali. Traz um alto grau de complexidade e alimenta algumas boas teorias. O pai adotivo, Mike, é uma peça fundamental dentro da trama, já que é psicólogo e, aos poucos, revela novas facetas de Milly. Só Phoebe que, algumas vezes, se mostra desnecessária. Ainda assim, porém, ajuda a contribuir para um final mais coeso, interessante e impactante.
O grande ponto positivo de Menina Boa, Menina Má, porém, é o diálogo quase invisível que se trava com o leitor e que, aos poucos, vai adquirindo um caráter desafiador. Assim como no recente A Vendedora de Livros, há uma constante necessidade do leitor duvidar do que está lendo e encontrar outras possibilidades. No caso do livro de Ali Land, a possibilidade de Milly não ser inocente é como um pêndulo -- numa página faz sentido, na outra se torna impossível. É extremamente dinâmico de ler e causa uma boa sensação da leitura não ser passiva. Há, de fato, uma troca entre as linhas e o leitor.
Menina Boa, Menina Má é um livraço. Além de ser um dos mais bonitos do ano em termos de capa e projeto gráfico, a obra é dinâmica, perturbadora, aflitiva, provocante. Difícil ficar impassível durante a leitura e, principalmente, ficar insensível durante a sua conclusão. Ali Land, sem dúvida, entra para o "caderninho" de autores para ficar de olho.
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