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Foto do escritorMatheus Mans

Resenha: 'Lupita Gostava de Engomar' é obra certeira para América Latina


Logo na primeira cena do novo romance da escritora mexicana Laura Esquivel, a policial Lupita lava sua calça suja de urina. O motivo? Ela acabou de presenciar o estranho assassinato de um dos políticos mais importantes do País. E Lupita, infortunadamente, foi a única testemunha do crime, que não possui suspeitos e tampouco uma motivação ou arma do crime. Nas mãos de qualquer outro escritor, essa premissa se transformaria rapidamente num romance policial qualquer. Mas não na criativa mente de Esquivel. Autora de Como Água para Chocolate, ela transforma a cena numa trama sobre descobrimento e instabilidade, acrescido de uma dose de crítica social e política.

Fragmentado e levemente episódio, Lupita Gostava de Engomar vai traçando aspectos pessoais e bem característicos sobre a vida da protagonista ao redor desse acontecimento. Seguindo a linha descritiva do título, cada capítulo fala sobre alguma das predileções de Lupita, como o gosto pela solidão, a diversão em olhar para o céu ou por tricotar. São ações, hobbies e características pessoais aparentemente indistintas, mas que vão se cruzando por algumas atitudes curiosas e que, de alguma forma, ajudam a compreender melhor o desenrolar das ações de Lupita no que envolve o tal crime que presenciou. Cada capítulo, como deve ser, tem uma função, um sentido geral.

É curiosa, então, a construção por camadas da personagem. Logo no início, Esquivel mostra que ela sofre com a persistente sombra do alcoolismo, que insiste sempre em assombrá-la, assim como a culpa que carrega pela morte do filho. Mas tudo, inicialmente, é mal explicado e explorado. É intencional, porém. Afinal, a cada capítulo, a cada explicação e aprofundamento sobre a vida de Lupita, há um novo tijolo que é colocado na equação geral da personagem e, principalmente, da grave situação inicial.

Assim, há uma intensa discussão sobre crime organizado, mercado de drogas, religião, política, corrupção e outras dezenas de mazelas que afetam a vida não só do México, como de grande parte da América Latina -- e o Brasil, é claro, deve estar incluído nisso. Ainda que Lupita seja uma personagem autossuficiente, carregando quase toda a trama sozinha, ela é muito mais do que uma simples história, do que uma anti-heroína. Ela é a somatização de todos os problemas sociais que vive o México e seus cidadãos. É a força do misticismo, da religião e do modo com as pessoas encaram seus problemas. Mais do que uma simples personagem, Lupita é uma grandiosa metáfora elaborada pela autora.

Sua própria constituição física, baixinha e gordinha, é uma alfinetada por si só da autora, que rompe com clichês do gênero literário da policial alta, forte fisicamente e sempre capaz. Lupita está presa em seu próprio mundo, que se mostrar como cada vez mais complexo e abrangente. Ela é mais do que alguém tentando descobrir a solução de um crime.

Dessa maneira, conforme a trama vai evoluindo e o livro vai ganhando corpo, se aproximando até de Malinche, outro grande livro de Esquivel, as coisas passam a ter contornos alegóricos com um forte pé no misticismo e no realismo fantástico, que volta a dar as caras com força na América Latina. Muitos devem se incomodar com a forma que Esquivel conclui a narrativa, mas não tinha como ser melhor. O último capítulo, ainda que seja inteiramente baseado na cultura ancestral mexicana, faz sentido para todos os países latinos. Brasil, então, está inteiramente representado ali. É forte, é impactante, é espiritual, é literário, é o que deveria ser. Um grande livro sobre um País que necessitava de uma história como essa. Agora, basta que a descubram.

Lupita Gostava de Engomar é um livraço. Apesar de ter sido lançado originalmente em 2014, pode ser considerado um dos melhores publicados no Brasil este ano -- mérito da Bertrand Brasil, que resgatou a obra no mercado editorial nacional. É folclórico, é crítico, é preciso no que precisa contar, sem enrolação. É um livro que a América Latina precisa descobrir, mergulhar e, quem sabe, ser uma fagulha para a transformação social e política que se torna cada vez mais urgente e necessária. Livro obrigatório para 2018.

 

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