Que livro mais forte, potente, complicado e intrincado é esse O Jogo das Contas de Vidro, último livro do premiado e celebrado Hermann Hesse, de O Lobo da Estepe e Sidarta. Profunda, a obra mergulha em uma utopia acadêmica. Isso mesmo: Hesse, do alto de sua complexidade literária e de toda a força que emana com suas palavras, imagina um futuro acadêmico brutal, frio, cruel.
O ano é 2020. Há, agora, uma organização responsável por salvaguardar todo o conhecimento da humanidade. José Servo, nosso protagonista, entra nesse seleto grupo e rapidamente se destaca. É aí que ele ganha habilidade no tal Jogo das Contas de Vidro. É um suposto sistema lúdico que concatenaria toda a ciência humana. Basicamente, José Servo domina sua missão.
No entanto, no meio desse processo, ele acaba "despertando" para o mundo real. É aí que vemos a história se desenvolver hábil e rapidamente. Assim, com uma narrativa densa e um tanto quanto cansativa, encontramos uma discussão e até mesmo reflexões a partir do papel acadêmico na sociedade -- uma conversa que, mesmo décadas depois, continua pertinente.
Somos convidados, assim, a entrar na vida de José Servo, seus questionamentos, suas dores. Mas isso não surge de maneira banal, simples. Hermann Hesse, ao invés de fazer uma ficção comum, apresenta ao espectador uma narrativa de regresso. A obra em questão, dentro dessa distopia, teria sido escrita anos depois da existência de Servo. Vemos relatos do futuro.
Por um lado, isso traz uma densidade enorme à trama. Conseguimos ver reflexões sendo feitas com a frieza necessária e que ajuda a dar corpo à crítica pretendida pelo autor. Por outro lado, falta um pouco do aspecto literário que vimos em Hesse por O Lobo da Estepe, por exemplo. Aqui, encontramos mais um registro, um diário, um documento. Falta leveza e, claro, fluidez.
Não há, assim, clímax, uma estrutura básica, nada disso. Por isso, enquanto é uma leitura cansativa (e longa!), há também muita genialidade no material. Hermann alcança aqui um estágio sublime da literatura, em que mostra um total domínio da história, dos personagens, da evolução da trama -- não é à toa que não há nem sequer um fio narrativo na obra, não é?
Quem vencer o cansaço, porém, vai encontrar um texto precioso, que ressoa demais nos dias atuais -- principalmente no avanço do fascismo ao redor do mundo, em que a oposição parece fazer frente apenas com blá-blá-blá e academicismo. Hesse, à frente do seu tempo, marca presença e mostra como é preciso ir além. Mostra as fragilidades dessa ideia ultrapassada.
Assim, enfim, O Jogo das Contas de Vidro é um desafio a ser vencido. Não é um clássico gostoso de ser lido, tampouco traz algum tipo de leveza ou divertimento no dia a dia. Pelo contrário. É denso, é forte, é profundo. Um mergulho potente ao que há de mais provocativo na literatura de Hermann Hesse. Se estiver em busca de uma leitura assim, não tenha dúvidas. É o livro ideal.