Uma mulher, disfarçada de franciscana, sai do meio da mata na noite de 1733. É quente e o Rio de Janeiro transpira as transformações sociais que o colonialismo traz. Enquanto tenta escapulir para casa, sem ninguém a ver, acontece o improvável: dois conhecidos se engalfinham no meio da rua e um deles sai morto. Sem querer, a misteriosa personagem acaba se transformando na única testemunha de brutal crime.
Esse é o ponto de partida do delicioso A Biblioteca Elementar, livro que encerra o chamado Compêndio Mítico do Rio de Janeiro, de Alberto Mussa -- cinco livros que recriam, com uma assertividade impressionante, a história popular das ruas cariocas em épocas diversas. Todos eles, porém, com a cidade em comum e crimes brutais sendo usados como linha narrativa central. A partir dela, um mundo se descortina.
Com um estilo que varia entre a classe de Machado de Assis -- guardadas as devidas comparações -- e a literatura das ruas e dos crimes de Rubem Alves, Mussa traça um relato sobre a culpabilidade que sempre recai na mulher. Afinal, de maneira contemporânea ao romance, acontece na Europa a inquisição, que veio a perseguir mulheres acusadas de bruxaria e outras bizarrices. O autor, então, mescla os relatos reais com a ficção inteligente, provocadora e bem dosada de A Biblioteca Elementar.
Assim, todos elementos funcionam bem em conjunto: a provocação nas entrelinhas, que resulta em um crime que não é verbalizado em momento algum -- genial observação de Mussa, aliás, na introdução; a escrita elegante e que, de fato, remete à literatura produzida clássica de séculos passados; e os personagens bem desenvolvidos e com características que saltam de suas personalidades, ajudando a dar um ar mais real ao Rio.
Há um elemento mítico, entremeado na narrativa, que pode tirar a pessoa de sua leitura por alguns segundos no momento que é apresentado. Mas, aos poucos, isso encaixa perfeitamente bem dentro da história, como já havia ocorrido nas outras quatro obras do Compêndio Mítico do Rio de Janeiro. É interessante, também, viajar nas mitologias que Mussa resgata -- principalmente a cigana, neste caso. Há poucos relatos sobre o cotidiano desses grupos sociais em séculos passados e a ficção, baseada na oralidade, ajuda a dar o tom.
O desfecho, então, se vale novamente no crime cometido e do cenário acerca da situação pra elevar ainda mais a crítica por trás da obra. A Biblioteca Elementar é um livro fino, de aparente leitura rápida, mas que toma um força descomunal conforme suas páginas avançam. É delicioso de ler, é impactante em seu conteúdo, é importante em seus avisos. Se você busca uma boa literatura, carioca ainda por cima, vale a pena visitar A Biblioteca Elementar e seus "quatro irmãos". É literatura de qualidade na certa.
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