* Atenção: o texto abaixo contém spoilers sobre a trama de Rafiki. Se não viu o filme e não quiser saber de detalhes profundos sobre a trama, salve a página e volte depois!
Rafiki é um filme queniano, lançado no Brasil na última quinta, 8, que tem uma produção deliciosa. Entre dores e amores, conta a história de Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva), duas jovens mulheres que são conhecidas na região por conta de seus pais. Afinal, eles estão concorrendo à cargos públicos e são rivais nas urnas. No entanto, mesmo com a distância mantida entre as duas famílias, elas acabam se envolvendo amorosamente -- o que é considerado um crime ali na região, gerando intensos efeitos.
Muitos fizeram críticas por aí e acabam por destacar pontos negativos, como a história que passa rápido demais, ou o evidente baixo custo de produção, etc. Aqui no Esquina, porém, buscamos mostrar um outro aspecto um pouco negligenciado em textos sobre o longa: o aspecto shakespeariano da trama. Escrito pela própria diretora Wanuri Kahiu (From a Whisper) e por Jenna Cato Bass (Flatland), o roteiro apresenta imersões e inspirações fortemente calcados na peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare.
No texto do inglês, escrito no século XVI, duas famílias em pé de guerra veem com horror o romance de seus integrantes mais jovens -- Romeu e Julieta, é claro. As coisas vão e vem, na tragédia típica de Shakespeare, quando a moça enxerga apenas uma saída: fingir que está morta para, assim, ficar livre para casar com Romeu. Ele, porém, por um triste acaso do destino, acaba não sabendo do plano e acha que a amada está de fato morta. Por isso, decide se matar para, enfim, ficar junto da amada no além-vida.
Rafiki, é claro, não tem todo esse teor rebuscado da trama de Shakespeare. Afinal, nem daria para transportar de maneira literal esse mundo do inglês para o Quênia do século XXI -- por mais que algumas atitudes pareçam da Idade Média. O que Wanuri faz, e chama muito a atenção, é transpor detalhes que ganham fôlego e poder dentro da própria história. Os pais rivais na política são o de menos aqui. A rivalidade, de fato, está no amor quase que impossível das duas protagonistas com o preconceito da sociedade.
O confronto, assim, é ainda menos equilibrado. São grupos sociais, repletos de pensamentos homofóbicos, que se contrapõem ao que as duas sentem. É um cruel cabo-de-guerra. Mais do que haver aceitação por parte da família -- o que também, claro, se faz necessário em Rafiki --, é preciso que Kena e Ziki encontrem respaldo popular. É algo quase impossível para o caso de jovens encontrar numa sociedade ainda afundada em preconceitos sexuais. É um Shakespeare ainda mais trágico e potente.
É curioso, também, como a cineasta transporta algumas descrições de Shakespeare para sua história, por meio de brincadeiras e simbolismos que surgem como possibilidade. Veja, por exemplo, este trecho abaixo extraído da edição brasileira do livro:
"Quem é aquela dama, que dá a mão ao cavalheiro agora? Ah, ela ensina as luzes a brilhar! (...) Como uma pomba branca entre corvos, ela surge em meio às amigas. Ao final da dança, tentarei tocar sua mão, para assim purificar a minha".
É interessante notar como esse trecho destacado possui correspondências com o filme queniano. Afinal, por mais que a primeira cena de contato entre as duas protagonistas seja após um ato de vandalismo de Ziki, é comum vê-la dançando entre amigas, enquanto Kena a observa -- chega a ter uma cena em que uma das amigas, que pode ser um dos corvos descritos por Shakespeare, chega a tripudiar da pretendente de Ziki.
Depois disso tudo, ocorre a revolta popular e a inevitável separação das duas. Como Shakespeare escreveu, "o amor procura o amor como o estudante que para a escola corre: num instante. Mas, ao se afastar dele, o amor parece que se transforma em um colegial refece". É isso que acontece com as duas personagens, que passam a temer o encontro, a troca de palavras, a expressão do amor. Ziki é mandada para longe dali.
E aí, neste ponto, muitos podem acreditar que o filme se afasta de Shakespeare. Mas muito pelo contrário: é aqui que ocorre o maior e melhor ponto de convergência entre o livro inglês do século XVI e o filme queniano do século XXI. Em Romeu e Julieta, fica claro que a única saída para o amor impossível é a morte -- mesmo que ficcionalizada por Julieta que depois, num rompante, também se mata. Em Rafiki, enquanto isso, a saída é a independência pessoal, que é representada em Kena como médica no País.
Quando Ziki põe a mão em seu ombro e a outro personagem sorri, fica claro que ambas têm consciência de que o caminho, agora, é outro. Dá para elas se relacionarem, mesmo com as restrições do País, pois não há mais as famílias por trás. A vida as levou e, com isso, fez com que o amor, talvez, se torne possível na intimidade da vida de cada uma.
E aí, com essa simples cena, Wanuri traz uma intensa reflexão: o mundo mudou e isso é fato. As coisas evoluíram, a independência sexual pode vir de diversas maneiras. Mas aí uma pulga atrás da orelha faz o espectador questionar de novo: será que evoluiu MESMO? Se tivesse evoluído, as duas precisariam ter passado por tudo que passaram? Ou será que vivemos, apenas, uma reedição do Shakespeare contou ao mundo há mais de 500 anos? A resposta é com você, leitor. Mas Rafiki é um bom ponto de partida.
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