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Foto do escritorMatheus Mans

Ponto Edita chega ao mercado editorial com Willa Cather


Os tradutores Luís Fernando Protásio e Mauricio Tamboni estavam desgostosos com o mercado editorial. Percebiam que a profissão do tradutor ficava muito presa aos bastidores do processo ao mesmo tempo em que sentiam haver um grande número de bons textos circulando por aí, sem ter uma editora que os publicasse em definitivo. Dessa maneira, a dupla acabou criando a Ponto Edita, editora que busca trazer bons textos ao mercado editorial brasileiro. Sempre com qualidade, calma e forte estratégia.

"Acontece que tradução é uma atividade de intervenção cultural historicamente apagada no circuito editorial. Existem ações nos últimos anos no sentido de reverter esse quadro, mas elas ainda são insuficientes", afirma Luís Protásio, sócio da editora. "Isso quer dizer que a discussão do papel do tradutor como agente nasce e morre nos meios especializados, como universidades e associações, e é ignorada pela lógica de mercado da indústria editorial. Esse é um ponto que está lá na gênese da ideia da editora."

Como primeiro lançamento, a Ponto Edita está apostando em Uma Mulher Perdida, de Willa Cather. Até então inédito no Brasil, o livro foi considerado o Madame Bovary americano e busca tecer forte crítica ao papel do casamento como instituição e ao choque de gerações. Até Truman Capote, o autor de A Sangue Frio e Bonequinha de Luxo, elogiou a obra de Willa, definindo-a como “um livro que mostra o que é escrever de verdade”. Assim, pode-se dizer que não é à toa a escolha de Protásio e Tamboni.

"É um livro que pode ser lido apenas como uma boa história, mas também tem camadas que podem se abrir para questionamentos mais políticos e humanitários e que dizem respeito ao mundo contemporâneo", explica Tamboni. "Como, por exemplo, a ganância do mercado financeiro, os males do machismo e do reacionarismo, os problemas ecológicos que hoje nos levam ainda mais perto de chegar a patamares irreversíveis...".

Abaixo, confira a entrevista completa do Esquina com Luís Fernando Protásio e Mauricio Tamboni, responsáveis pelo lançamento da Ponto Edita no mercado editorial brasileiro:

Esquina da Cultura: De onde surgiu a ideia da editora? Como foi esse início de vocês?

Luís Fernando Protásio: Apesar de a Ponto Edita ter sido criada oficialmente em dezembro de 2018, a ideia da editora surgiu bem antes. Nossa formação é em tradução e nossa experiência profissional e acadêmica é a tradução editorial — que um pessoal meio desavisado às vezes chama de tradução literária. Acontece que a tradução é uma atividade de intervenção cultural historicamente apagada no circuito editorial. Existem ações nos últimos anos no sentido de reverter esse quadro, mas elas ainda são insuficientes. Isso quer dizer que a discussão do papel do tradutor como agente nasce e morre nos meios especializados, como universidades, associações etc., e é ignorada pela lógica de mercado da indústria editorial. Esse é um ponto que está lá na gênese da ideia da editora.

Maurício Tamboni: O outro ponto é a liberdade de publicar só livros que realmente achamos que têm uma contribuição a oferecer e trabalhar com pessoas que também tragam essa contribuição. É uma vontade que ganhou força quando dávamos cursos de tradução e preparação de texto na Unicamp. Ali eu via pessoas extremamente talentosas e dedicadas, com boa formação, que passavam anos tentando uma oportunidade e não conseguiam, acabavam indo fazer outra coisa. Com isso, nosso mercado foi perdendo talentos em toda a cadeia, mas esse fator nunca é citado quando falamos da crise no setor editorial. Pode ser que alguém diga que foi um fator secundário, porque parece que hoje em dia as pessoas são sempre colocadas em segundo plano, mas é um fator. Se as últimas traduções que você leu não foram assinadas por nomes já chancelados, talvez você nem saiba o nome do tradutor. Ou do preparador e do revisor que salvaram esse tradutor de 28 deslizes tenebrosos. Isso foi um grande propulsor e na Ponto Edita criamos o que chamamos internamente de “folha da Ponto Edita”, uma página de créditos dentro do livro, parte integrantes do projeto gráfico, cuja função é exclusivamente dar os créditos a todo mundo que realizou aquele livro. E foi muito bom ter trazido para a editora alguns dos alunos que conhecemos nesses cursos!

Esquina: O que os leitores podem esperar da editora? Qual o foco de vocês?

Maurício: Somos uma editora aberta às diversas mídias e buscamos um público também aberto a receber conteúdos diversos e multimidiáticos. Como a ideia é criar um conteúdo que dê vida ao livro e agregar valor ao papel, convidamos artistas, músicos, professores e influenciadores para que, cada um dentro de sua área de atuação, crie uma intervenção única, original, nos livros da Ponto Edita. Nossos livros são um diálogo com artistas e com o público que consome artes de um modo geral, pessoas que não têm medo de arriscar e que definitivamente não funcionam dentro da lógica do like. Algumas colaborações ainda não podemos divulgar, mas, por exemplo, no livro da Gertrude Stein, teremos uma crônica poética da violonista Badi Assad, um dos textos mais emocionantes que já li na vida. Cada livro da Ponto Edita é único do ponto de vista não apenas de suas soluções gráficas, mas também de experiências editoriais. Por isso não podemos e nem queremos publicar 35 livros por ano e deixar esses livros morrerem rápido. Nossa ideia é passar um tempo considerável produzindo o nosso conteúdo para que o nosso leitor também possa passar um tempo da sua vida com nossos livros. A própria natureza da linguagem de nossos livros impede que eles sejam só mais um na pilha imensa de leituras do mês. O consumo é um fato, é evidente, mas precisamos repensar o consumismo – inclusive de livros.

Luís: É claro que, hoje em dia, a maior commodity é o tempo, então é claro também que muitos leitores eventualmente vão ficar pelo caminho, capturados pela mesa de best-sellers das livrarias. E tudo bem — os materiais não precisam falar com todo mundo, e nicho também é isso: uma escolha. O slogan da editora é “Olhe de novo, leia de novo, pense de novo” justamente por isso: as coisas não precisam de uma resposta imediata porque simplesmente não existe uma. A gente precisa pensar sobre o que lê e isso demanda um tempo. Se o leitor não se permite um tempo para pensar sobre aquilo que lê, acaba virando alguém que ama 1984 ou A revolução dos bichos e, ao mesmo tempo, defende a perseguição aos professores, por exemplo. Nossos livros fazem o leitor pensar de novo. Então eu diria que os leitores podem esperar da Ponto Edita livros que vão exigir tempo, peças que vão tirá-los da zona de conforto.

Esquina: Vocês começaram com 'Uma Mulher Perdida'. Qual foi o motivo da escolha? O que esperam do livro no mercado?

Luís: Willa Cather foi uma mulher extraordinária e extremamente à frente de seu tempo: questionou as convenções de gênero numa época em que essas questões simplesmente não eram colocadas, conseguiu se destacar em um ambiente dominado por homens, como era o jornalismo naquela época, ganhou admiração do público, da crítica e dos pares, ganhou o Pulitzer. E se por um lado sua vida pessoal é carregada da modernidade pulsante da época, por outro Willa tem uma prosa bastante acessível . Suas inovações estilísticas, como a limpeza do texto e a frase seca, quase sem adornos e com pouquíssima adjetivação entram naquele conjunto de novidades que acabaram naturalizadas e, hoje em dia, fazem parte da bagagem dos leitores. Isso é muito diferente de Gertrude Stein, que será nosso segundo lançamento. Stein é muito conhecida, muito mais do que Willa Cather, mas tão pouco lida quanto, eu diria. Esse foi um motivo. O outro motivo foi que Willa Cather foi um grande sucesso de vendas nos Estados Unidos nos anos 20, 30 e 40 do século passado, mas acabou esquecida no Brasil. Achamos que seria bom o leitor brasileiro redescobri-la.

Maurício: E tem também a questão do timing. Agora é um bom momento porque, em especial em Uma Mulher Perdida, Cather, por meio de alegorias, faz vários alertas mais atuais do que nunca. É um livro que pode ser lido apenas como uma boa história, mas também tem camadas que podem se abrir para questionamentos mais políticos e humanitários e que dizem respeito ao mundo contemporâneo, como a ganância do mercado financeiro, os males do machismo e do reacionarismo, os problemas ecológicos que hoje nos levam ainda mais perto de chegar a patamares irreversíveis... Durante a produção, mantivemos um diálogo constante com o National Willa Cather Center, em Nebraska, responsável por manter viva a obra dessa escritora. Como o Luís falou, Cather andava meio esquecida por aqui, mas parece que a conjuntura contemporânea realmente nos leva a relembrar a sua relevância – tanto é assim que na semana passada soubemos que ela vai ganhar uma estátua para representar o Nebraska no Capitólio. Acho que a minha expectativa é basicamente esta: que esse livro abra as mentes das pessoas e faça o público conhecer melhor a mulher extraordinária e a escritora virtuosa que Willa Cather foi.

Esquina: Atualmente, o mercado editorial vive uma crise. Como posicionar a editora nesse momento?

Luís: A crise no mercado editorial é principalmente uma crise das livrarias, quer dizer, uma crise causada em grande parte pela irresponsabilidade financeira de grandes redes de livrarias e pelo modelo estrangulador de consignação imposto às editoras. Como as independentes nunca tiveram espaço nessas redes, elas investiram na relação direta com o leitor e em outros modelos de negócio, como financiamento coletivo, clubes de leitura, feiras especializadas, venda direta no site etc., e isso resultou que, até certo ponto, elas foram “poupadas”. A crise não é porque as pessoas deixaram de comprar livros, mas porque a grandes redes de livraria deixaram de repassar os pagamentos para as editoras. Existe uma crise no espectro financeiro, é verdade, mas, apesar de toda uma conjuntura que tenta massacrar a produção cultural, não podemos dizer que exista uma crise criativa. O mercado editorial independente tem ações importantes, como a Coesão Independente, uma rede de editoras independentes, da qual a Ponto Edita tem orgulho de fazer parte, e que tem uma postura colaborativa e não competitiva. É o tipo de ativismo real, que vai além de uma hashtag e é muito animador fazer parte de ações assim, especialmente nesses tempos estranhos.

Maurício: Então, feliz ou infelizmente, a crise, que não é só no nosso meio, diga-se de passagem, está levando o mercado editorial como um todo, que estava um pouco acomodado com o modelo tradicional de comercialização do livro, a encontrar saídas muito sagazes. Ainda nos últimos dias estava em pauta nas redes sociais a questão de uma grande multinacional que está sufocando as empresas menores e vimos uma reação considerável de parte do público no sentido de agir para defender os independentes. É importante estar realmente atento ao que as pessoas estão buscando, observar as movimentações.

Esquina: Qual a expectativa de vocês com o futuro da editora?

Luís: Queremos oferecer uma experiência aos nossos leitores, do livro à embalagem, passando pelo contato direto com nosso público — respondemos pessoalmente a todas as mensagens que recebemos. Aumentar no mercado a oferta de clássicos nunca editados ou fora de catálogo e apresentar literaturas contemporâneas inventivas, que não reproduzem ou conformam algo dado, mas provocam o confronto com alguma coisa da ordem do desconhecido, que é outro nome para o novo. E os leitores só podem se abrir para o novo se eles tiverem contato com o novo. Não se trata de reproduzir ou confirmar, mas questionar uma posição. Por exemplo, nosso primeiro lote de livros, além de Willa Cather e sua crítica ao patriarcalismo encarnado, traz um romance de Gertrude Stein inédito em português e dois livros de estreia de escritores contemporâneos: a inglesa Kate Armstrong, que desconstrói a noção de narrador, e o argentino Juan Francisco Moretti, que explora as angústias da “última geração da internet discada”, como ele costuma descrever.

Maurício: Que é a nossa geração, que cresceu assistindo àquela programação experimental e inovadora da MTV Brasil dos anos 90, mas, talvez por causa desse momento de crise e repressão, parece que estamos com medo dessa nossa formação voltada para o experimental. O que eu quero é que sigamos arriscando, que as pessoas estejam abertas a nos acompanhar nessa empreitada e que o que fazemos inspire o nosso público a também não ter medo de arriscar.

 
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