Quando comecei a leitura de O Mundo de Quatuorian, escrito pela fluminense Cristina Pezel, senti como se estivesse entrando num difícil labirinto da alta fantasia. E não por problemas narrativos ou coisa do gênero. Pelo contrário: o livro é um dos mais complexos e completos já escritos no gênero de fantasia no País, surpreendendo com uma trama cheia de detalhes de política, economia e até gastronomia.
Mas não se engane achando que, por conter esses detalhes, o livro de Pezel é chato ou de leitura difícil. Não, não. Ele vai revelando esses detalhes específicos e essenciais pra, depois, descortinar uma história de cair o queixo. No centro da trama, três jovens se veem inseridos em uma obscura profecia e, juntos, precisarão mostrar forças e salvar o mundo da catástrofe.
Ainda que o livro tenha como premissa o clichê da profecia, já visto em livros como Percy Jackson e até Harry Potter, Pezel não se deixa cair em obviedades. Os seus personagens são muito bem escritos e, aliados à construção de mundo impecável, fazem com que seus leitores entrem de cabeça na trama. Quando engatei na leitura, por volta da página trinta, não queria mais largar o livro.
Parte disso é de responsabilidade, também, do ótimo clima de tensão criado pela autora. O subtítulo da obra, Cheiro de Tempestade, ilustra bem isso: os três jovens estão aprendendo a usar seus poderes enquanto a tal ameaça, descrita na profecia, vai crescendo e tomando forma. É uma corrida contra o tempo bem ritmada e sem nenhum tipo de exagero narrativo que é comum nessas histórias.
E o melhor é que Cristina não deixa o ritmo cair até a última página, concluindo o primeiro volume de O Mundo de Quatuorian de maneira exemplar. Difícil conter a vontade de correr pra ler o volume 2. Afinal, Cristina é o claro exemplo, junto com um punhado de grandes autores, de que a fantasia continua viva no Brasil -- e com cada vez mais força. Que venha o próximo livro!
Abaixo, confira a entrevista exclusiva que o Esquina fez com a autora, via e-mail, sobre seu livro e o cenário da fantasia nacional:
Esquina da Cultura: Primeiro me conte um pouco como foi o processo de escrita de seu livro, “O Mundo de Quatuorian”. De onde veio a ideia inicial, como foi a criação desse universo, quais os desafios da escrita?
Cristina Pezel: A ideia do Mundo de Quatuorian veio acompanhada de muitos desafios. Queria escrever algo com elementos fantásticos, mas totalmente novo. Eu me propus à empreitada de fugir de elementos como cavaleiro – espada – sangue. Queria também fugir de entidades já conhecidas como elfos, orcs, fadas. Defini que o mundo teria territórios e seria ambientado numa época pré-industrial, e quis usar uma temática medieval.
O desafio permanente do escritor de fantasia é fazer tudo ficar verossímil e envolvente. Fiz o máximo para alcançar isto. Dediquei muito tempo a pesquisas sobre vários detalhes (por exemplo: distâncias percorridas por cavalos em viagens, trajes medievais, alimentos, funcionamento da mensageria com pombos-correio, vulcões etc).
Comecei pelos regramentos básicos do mundo, a estrutura econômica e política. Defini os poderes mágicos que os personagens teriam (afinal, sem espadas, precisam de algo para lutar). Desenhei o mapa territorial para analisar como seria a dinâmica dos acontecimentos da trama que se delineava em minha mente. Em seguida, comecei a estruturar Quatuorian, criando minhas próprias entidades e construindo um conjunto de características (por exemplo, a existência de vulcões e sua importância na mitologia do mundo). Delineei também alguns dos personagens chave e um mindmap com relacionamento entre as famílias e personagens.
Com tudo isso em mãos, comecei a escrever. Enquanto escrevia, muita coisa foi tomando outras formas e seguindo caminhos diferentes do que eu imaginava inicialmente, e assim a história foi se formando e ganhando vida própria e densidade.
Esquina: Você cria um mundo totalmente novo, com regras próprias até na economia e na política. Como foi para criar detalhes tão precisos e complexos? Acho que este tipo de detalhe enriquece o mergulho na trama?
CP: A maior parte desses detalhes foi construída previamente à história. Fiz questão de fazer tudo ficar coerente para alcançar o máximo de verossimilhança. A apresentação dessa construção ao leitor certamente enriquece a experiência de leitura, pois ele se ambienta no mundo e pode acreditar em suas regras e em como as coisas funcionam por lá. Pode transpor-se para Quatuorian, passear na Alameda Dulcívia e sentir o cheiro de flores e mel; ser um observador das assembleias dos Mestres no grandioso Partheon de Probatus; assistir à luta entre os animais gigantes.
Em Quatuorian os anos são contados pelos “sóis-azuis” (não utilizo a palavra “ano”, nem “dia” no sentido de 24 horas, nem horas ou minutos) e logo nos primeiros capítulos o leitor entende que a cada vez que um sol-azul aparece, já transcorreu um ano. Expus esses pormenores com cuidado para não ser excessivamente descritiva, tentando alcançar a medida certa para que o ritmo da história fluísse, com bastante ação e aventura.
Esquina: Eu percebo que, atualmente, muitos escritores de “alta fantasia” estão encontrando espaço em editoras independentes. Você concorda? Acha que é o melhor caminho hoje em dia?
CP: Isso é fato não só para o gênero da alta fantasia. Pode ser um bom caminho para autores que desejam propagar sua obra, no entanto há muitos riscos envolvidos porque há editoras independentes que não são na realidade editoras e o autor acaba tendo um alto investimento para apenas imprimir um livro (muitas vezes sem sequer uma revisão) e não tê-lo distribuído nas livrarias. Eu particularmente segui outro caminho. Em 2016 fiz minha própria impressão de uma tiragem pequena para divulgação. Depois disso, enviei o livro para alguns blogueiros e editoras, dentre elas a Mundo Uno, uma pequena editora de Porto Alegre, que demonstrou interesse em editar e publicar a história. O trabalho de edição e revisão durou cerca de oito meses. Enquanto isso, trabalhamos o conceito da capa com o artista Emerson Camaleão, que fez um belíssimo trabalho.
O livro teve ampliada a quantidade de capítulos (foi preciso aprofundar mais alguns personagens, acrescentar algumas tramas secundários e esclarecer algumas coisas), e a Mundo Uno tomou a decisão editorial de dividi-lo em dois volumes, o primeiro sendo lançado na Bienal do Rio em 2017 e o segundo na Bienal de SP em 2018.
Posso afirmar a todos os autores novos que desejam publicar seus livros: a edição é algo importantíssimo para alcançar todo o potencial da obra. E antes de submeter seu livro a alguma editora, contrate uma leitura crítica do original. Fará muita diferença!
Esquina: Apesar de termos ótimas histórias, como a sua, sinto que ainda falta para a “alta fantasia” deslanchar no Brasil para o grande público, ainda ficando restrito aos nichos. Você concorda? Falta incentivo das grandes editoras?
CP: Sempre tive esperanças de ver isso mudar e creio que sim, agora está mudando, ainda que vagarosamente. Realmente o gênero ainda não alcançou todo o potencial de leitores que poderia, mas há várias iniciativas para disseminar a literatura de fantasia e alcançar mais adeptos, principalmente entre leitores em formação. O que falta é um incentivo maior ao autor nacional.
Vejo editoras grandes apostando em livros de fantasia, mas sinto ainda falta de incentivo de grandes editoras a autores brasileiros da nova safra. Para as editoras, ainda é mais fácil comercialmente adquirir direitos de obras de autores já testados no exterior. No entanto, apostar em autores brasileiros que estão despontando nesse oceano poderia ser muito proveitoso para as editoras. Além de apoiar a literatura nacional, a editora contaria com um autor que tem maior disponibilidade para comparecer a eventos e estar perto do público leitor, seja presencialmente ou pelas redes sociais, e essa proximidade certamente ajuda a fidelizar os leitores e melhorar a experiência da leitura.
Há excelentes autores no Brasil, criando histórias simplesmente magníficas e que se igualam e até superam, em qualidade, muitas histórias importadas do mercado editorial externo. Estamos todos torcendo para que as editoras possam olhar com carinho para as pratas da casa.
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