Azougue Nazaré é um filme que se encaixa muito bem no cinema de 2019. Assim como Bacurau, é um longa-metragem que fala sobre resistência. Sobre pessoas resistindo em sua religião e cultura para bater de frente com o intolerante. É algo que, no filme, é representado por uma pequena cidade pernambucana. Mas que vai além.
O Brasil, afinal, está vivendo um momento pungente de intolerância, de desmonte, de indiferença ao próximo. Culturas e religiões como o maracatu são ainda mais discriminadas, marginalizadas. Só por meio da comunicação, como o cinema, é que o cenário pode mudar. A resistência está na fala, no gesto, na divulgação da cultura.
Em Azougue Nazaré, acompanha-se este embate. De um lado, Catita (Valmir do Coco), um homem que vive o maracatu de forma religiosa. Do outro, sua esposa e o pastor da cidade (Mestre Barachinha), que demonizam a prática do maracatu. Para eles, a saída é apenas uma: a religião cristã, evangélica. Nada de festa, bagunça, azougue ou maracatu.
"Sempre existiu intolerância religiosa no Brasil. O que acontece agora é que elas estão mais escancaradas, mais claras. E o maracatu é uma arte de pura resistência", contextualiza Tiago Melo, diretor do longa-metragem. Ele, até então, era conhecido por ser produtor de filmes como Bacurau e Aquarius. Agora, comanda a própria história.
Abaixo, confira os melhores trechos da entrevista com o cineasta Tiago Melo:
Esquina da Cultura: De onde surgiu a ideia do filme? Como chegou até essa história?
Tiago Melo: Eu queria fazer um filme em Nazaré da Mata (PE), que é a cidade da minha mãe. Fui fazer a pesquisa de um documentário, para uma série sobre religião, e o episódio que iria dirigir se chamaria Maracatu Sagrado. A ideia era abordar a parte religiosa do maracatu rural. Mas eu estava incomodado, pois já existem muitos documentários sobre o maracatu -- e muitos são bons. Além disso, durante a pesquisa, vi que os personagens são atores dentro do próprio maracatu. Todos são acostumados com câmera, pois dão muita entrevista. Vendo todos esses elementos, quis fazer ficção.
A partir disso, falei com Mestre Barachinha, uma das principais lideranças do maracatu, e sugeri em fazer uma ficção. Ele ficou animado e disse que não sabia se participaria se fosse um documentário, já que é sempre a mesma coisa. Com a ideia da ficção, usando a parte mística, ele topou na hora. Foi quando tudo começou a surgir.
Esquina: E o filme tem um universo muito místico. Como foi isso? Como aproveitar essas histórias?
Tiago: Eles me contavam muitas histórias do passado. Histórias muito fantásticas, como o caboclo que sumiu, o que ganhava poderes ao tomar o azougue. Isso foi me dando vontade de colocar essas histórias nos dias atuais, onde essas questão sobrenaturais são postas em dúvida. Queria causar essa recepção para esse universo do maracatu.
Pernambuco tem muitas histórias místicas, inclusive sobrenaturais. Sou um pesquisador do tema, gosto bastante. Mexer com o subconsciente, com o imaginário, é rico. A gente já consome histórias assim que não são daqui. Precisamos passar por nossas histórias além das lendas urbanas e europeias, que já acreditamos e tememos.
Esquina: Falando em elenco, como foi o trabalho com o Valmir do Coco? Como foi isso?
Tiago: Ele é uma figura fantástica. É um monstro, no sentido da atuação. É um ator nato, de vida. É um dom. Ele nasceu pra isso. A energia toda dele vai pra isso, que é uma atuação de cinema. Não é de teatro. É cinema! Ele tem um registro cênico, no processo de preparação, que é surpreendente. É raro de se ver por aí. Ele lembra exatamente o que aconteceu no ensaio, um mês depois. Ele vai buscar fundo, ele entende a cena.
Tem também o Baracinha, que é um grande mestre do maracatu e sai totalmente do que é a vida dele. Ele conduziu isso com muito respeito e com muita dedicação. Ensaiava muito, fazia laboratórios. Ele também se tornou meu conselheiro e a me ajudar no processo de convencer as pessoas a participar do filme. A explicar o que é um set. E ele entrou no personagem. Andava na cidade vestido como evangélico. Enganou as pessoas.
Esquina: E todos eles parecem muito espontâneos em cena. Parece tudo muito real.
Tiago: É engraçado isso. Eu tinha consciência de que precisava ser assim e, por isso, eu ensaiava muito com os atores. Ensaiava tanto até o ponto de ficar realmente natural. Parece que tudo foi feito na hora. Mas não. Se fosse deixar pra ser espontâneo na hora, não ia ser espontâneo de fato. Tem uma dinâmica de set, uma equipe por trás, que não permite isso. Todos os versos foram compostos antes, todas as falas foram treinadas.
Esquina: O filme fala muito sobre intolerância. Como é falar disso num momento como esse do Brasil?
Tiago: Quando comecei a fazer esse filme, em 2014, o cenário era diferente. Muita coisa aconteceu de lá pra cá. Mas sempre quis falar da intolerância religiosa, pois sempre existiu. O que acontece agora é que elas estão mais escancaradas, mais claras. E o maracatu é uma arte de pura resistência. É uma arte que, desde que foi criada, foi proibida. É lindo o que acontece, essa resistência. O maracatu é um espelho pro Brasil, mostrando às pessoas como elas conseguem fazer o que amam. Nada pode impedir.
O Brasil precisa de mais maracatu. É preciso olhar mais pra cultura popular, mais pras bases. Até pela nomenclatura, a cultura popular é discriminada. Por ser executada por pessoas mais humildes. Sou contra isso. É preciso olhar mais pra cultura popular hoje.
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