Não queria transformar esse texto em um relato simples e banal. Nem tampouco em uma experiência extremamente pessoal. Ou encher essas linhas com milhões de adjetivos -- coisa que evitamos a qualquer custo dentro do jornalismo. Mas não vai ter jeito. O que se segue será um breve relato da apresentação do tenor José Carreras, em São Paulo, no Citibank Hall, no último domingo, 21. Então, permitam-me usar o primeiro adjetivo: fantástico!
Representando o Esquina, eu e minha digníssima esposa nos dirigimos para a casa de shows embaixo de uma chuva torrencial guiados pelo GPS. Nessas horas, surge o primeiro pensamento: será que vale a pena sair de casa? Entendam: é domingo, tenho um bebê de um ano e oito meses, a avó vem cuidar, chuva, frio, o carro não tem ar quente, o vidro embaça, trânsito, ruim de estacionar, enfim...
Por outro lado, “Life in Music” será a última turnê de Carreras. Depois disso, o vazio, o silêncio. E por que não fazer parte desse momento histórico. Jornalista gosta disso, registrar a História -- essa mesma, com H maiúsculo. É bom poder usar a frase: “eu fui, eu vi, eu estive lá”.
Assim sendo, não podia ficar de fora. Depois, tenho certeza, iria me bater um arrependimento, igual a aqueles quando se quebra um vidro de compotas cheinho. Igual, infelizmente, a não ter visto Luciano Pavarotti no Brasil, B.B. King, Amy Winehouse e Tim Maia. Estive muito perto de assisti-los, mas perdi e para morte não há show extra.
A apresentação começou com um pouco de atraso. Sob a regência do maestro David Giménez e da Orquestra Juvenil Heliópolis, o mais discreto dos Três Tenores se tornou gigante. O palco foi preenchido com sua voz, as paredes reverberavam cada nota e os meus ouvidos agradeciam. Em meio a tudo isso, eu fiquei pensando: ele vai parar?
Tudo bem, ele tem 70 anos, já foi a todos os cantos do mundo, transformou a ópera, com a ajuda de Plácido Domingo e Pavarotti, em algo popular. Mas vai parar? A partir dessa constatação, bateu um desespero, pois cada minuto é menos um minuto de Carreras. Quanto se quer mais, menos se vai ter.
Atordoado por sensações, eu me lembrei do filme Curtindo a vida adoidado, onde Ferris Bueller diz: “A vida passa rápido demais. E se você não curtir de vez em quando, ela passa e você nem vê”. Como eu poderia segurar a vida? Foram quarenta e sete anos de carreira de imenso sucesso. Alguns momentos mostrados no telão como Viena, Berlim, Barcelona. Alguns amigos também, como Sting, Liza Minelli, Elton John e os companheiros Pavarotti e Domingo.
A apresentação seguiu, intercalada com a ajuda primorosa da soprano Jaquelina Livieri. Duas horas e alguns minutos voaram ao som de Je Te Veux, Pecchè, El Dúo de la Africana. Quando se ouve a introdução de O Guarani seguido de Aquarela do Brasil, a ovação é geral. Talvez pelo momento político em que o país se encontra, o que era para ser uma homenagem toma ares de um patriotismo à flor da pele.
Quase no fim, eu ainda espero Granada e Tu, ca nun chiagne, fenomenais, para mim, na voz do tenor. Mas... Para encerrar, José Carreras, ao lado de Livieri, faz todos delirarem com a já tão distante Amigos para sempre, música da Olimpíada de Barcelona (1992).
Pendurar as chuteiras é um termo ligado ao jornalismo esportivo. Dizem que Pelé foi muito inteligente em fazer isso, em parar de jogar no auge, pois ninguém poderia se lembrar de uma atuação ruim. O mesmo vale para Carreras, que sai dos palcos inteiro, pleno e soberano, deixando ao público a saudade e a certeza que um dos pilares da música passou por ali.
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