A paternidade, afora toda a alegria e responsabilidade que a acompanha, é um desafio. Isso é fato. A preocupação, o estresse, os planos para o futuro da criança e os cuidados para o bem-estar dela começam cedo e apenas se acentuam quando ela, após toda a expectativa que precede sua chegada, finalmente nasce. Aí começa uma nova (e nada fácil) caminhada: educar, ensinar, cuidar e amar tão bem quanto puder. Quando se é pai de uma criança especial, então, o desafio vai além.
Em sua graphic novel de estreia, Não era você que eu esperava, o francês Fabien Toulmé opta por abrir mão da ficção ao contar uma história de sua própria vida. Pai de Julia, nascida com Síndrome de Down, o autor expõe a difícil jornada em aceitar a filha "anormal" (como ele mesmo chega a chamá-la) de maneira sensível e, ao mesmo tempo, surpreendentemente bem-humorada.
A narração acontece em primeira pessoa e mostra-se essencial para que o leitor conheça os pensamentos mais íntimos do autor sobre seus próprios defeitos como pai e também a culpa que carrega disso, mesmo anos depois. Tudo é explicitado de maneira sincera - e até mesmo chocante em alguns momentos, como quando Toulmé deseja que a filha não sobreviva à uma cirurgia no coração - de maneira que quem lê fica livre para julgá-lo como bem entender a cada nova revelação.
A razão para o preconceito do autor para com pessoas com Síndrome quando pai revela-se ainda mais complicada quando descobre-se que ela tem origem ainda em sua infância. Por meio de “inocentes” brincadeiras de criança, o preconceito tornou-se hostilidade, a qual apenas se agravou na vida adulta. Até que Julia chega para mostrar que tudo aquilo que ele acreditava sobre o assunto estava errado. Nesse ponto, fica difícil não se colocar no lugar do personagem de Fabien: quantos preconceitos carrega-se na vida sem nem mesmo perceber?
O traço simplista e quase caricaturesco de Toulmé não deixa nada a desejar para a narrativa. Mais do que para apenas contar uma bela história, ela ajuda a dar um tom mais leve na abordagem de um assunto naturalmente dramático e torna a leitura mais agradável. O inteligente uso de metáforas visuais para representar o estado de espírito do autor diante de algumas situações confere um tom de humor inesperado, mas muito bem-vindo.
Ainda sobre a arte, merece atenção também as cores que compõem a HQ: cada capítulo ganha uma diferente. Na psicologia, cada cor possui um significado próprio e o autor usa delas para representar seus próprios sentimentos em cada passagem. O retorno de Fabien à França é representado pela cor verde (fertilidade, esperança), por exemplo, enquanto o azul (harmonia, fidelidade) é usado no emocionante desfecho do livro.
O resultado desse trabalho é uma obra que leva o leitor a sentir o que o autor sente, de forma que, ao final da leitura, acaba-se por conhecer mais a fundo não somente sobre quem escreve, como também a si próprio. Chega a ser quase impossível terminar de ler sem flagrar-se refletindo sobre qual seria a própria reação em uma situação similar à do autor.
Não era você que eu esperava é, acima de tudo, uma confissão corajosa. Escrita de pai para pais, trata de um assunto delicado: o amor incondicional que é esperado que genitores sintam por seus filhos. Ao expor sua jornada de crescimento pessoal para aceitar a própria filha como ela é, e não como desejava que ela fosse, Toulmé se expõe a possíveis críticas, mas não hesita em compartilhar a experiência com o leitor.
Todo homem - e mulher também - deveria tirar um tempo para ler a HQ. Ainda mais se já tem ou pretende ter filhos. Afinal, como a obra mostra a cada virada de página, a paternidade é um presente cheio de dificuldades, imprevistos e possíveis decepções, mas com o qual é possível aprender quando menos se espera. Como Toulmé diz à filha ao colocá-la para dormir: "Não era você que eu esperava, mas fico feliz por ter vindo". E não é sempre assim?
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