O Festival de Cinema de Gramado começou bem nesta sexta-feira. Na noite de estreia das mostras competitivas nacional e Gaúcha, os dois longas e dois curtas apresentados trazem propostas artísticas e de linguagem inventivas e histórias que nos identificam e nos afligem.
Uma ressalva antes: não é fácil para um realizador brasileiro dirigir filmes de gênero no País, especialmente o policial, sempre sujeito a ser comparado como um subproduto das produções de Hollywood, seja longas ou séries. Como se essas obras tupiniquins não conseguissem escapar do cânone do gênero da terra do Tio Sam.
Os críticos, em sua maioria, já estão com seus textos preparados para dizer que o filme policial brasileiro é um amontoado de clichês do gênero americano, um mero exercício de emulação dessas produções, sem identidade própria, sem apresentar à história as características tão nossas, ou seja, de um país de terceiro mundo com seu submundo do crime.
Dito isso, é necessário colocar que A Suspeita, de Pedro Peregrino, um dos sete concorrentes da mostra competitiva nacional do Festival de Gramado, exibido nesta sexta-feira, 13, é um filme policial com DNA nosso. Tem a identidade de um filme realizado em um país de "terceiro mundo", mesmo que ele tenha que trabalhar no campo do cinema clássico americano, especialmente o do gênero policial, mas não abrindo mão das concepções artísticas próprias e da cultura policial nos moldes das histórias de Rubem Fonseca e do Rio de Janeiro da contravenção e das drogas.
Não é à toa que uma das referências que o filme traz, mesmo que o diretor não tenha objetivamente pensando nela, é o longa Bufo & Spallanzani, de Flávio Tambellini, que por sinal concorreu no Festival de Gramado, com sua atmosfera claustrofóbica, densamente noturnas, labirínticas e lacunares, como convém a uma boa história de investigação policial.
Em A Suspeita, a investigadora da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Lúcia, vivida com precisão e de maneira crível pela atriz Glória Pires, trabalha naquele que pode ser seu último caso antes da aposentadoria.
No meio extremamente machista com colegas e chefes homens, Lúcia tem que provar que consegue continuar atuando no caso em que ela passa a ser uma das suspeitas, no caso, a principal, depois de supostamente ter matado um colega policial numa perseguição a outro suspeito, um escritor.
Para complicar ainda mais sua situação, Lúcia sofre de mal de Alzheimer, o que torna quase impossível sua missão obsessiva de resolver o caso, mesmo que os seus superiores tentem devolvê-la, pedindo para ela se afastar enquanto as investigações sobre o caso não avançarem.
O diretor Pedro Peregrino, juntamente com seu parceiro de fotografia, Fabrício Tadeu, constrói a história para o espectador pelo ponto de vista da personagem da Lúcia, com seus lapsos de memória em decorrência do agravamento do Alzheimer, em que o que é visto pode não corresponder com a realidade mostrada.
Para isso, as cenas em que Lúcia adentra corredores, sobe escadarias e apartamentos, é visto com uso de travelling ou com câmera distanciada, dando a sensação de imprecisão e de confusão para o espectador, como se estivéssemos na mente eclipsada da personagem Lúcia.
Outro elemento sensorial que o filme utiliza para intensificar a sensação de confusão mental da personagem, é o som externo, seja do barulho da rua, de uma chuva torrencial e de ecos.
É ao mesmo tempo um filme policial nos moldes das adaptações de Rubem Fonseca para o cinema e um drama social, com uma personagem que sofre do mal de Alzheimer e tem que lidar com as limitações extremas da evolução da doença.
Diante de um corpo que será aprisionado por uma doença degenerativa, Lúcia empreende a sua última jornada de libertação, o que assemelha A Suspeita a outros filmes que tratam do mal de Alzheimer, o potente Meu Pai, de Florian Zeller, com uma atuação soberba de Anthony Hopkins, e Para Sempre Alice, de Richard Glatzer e Wash Westmoreland, com Juliane Moore, ambos vencedores do Oscar pelos respectivos trabalhos.
Personagens que recusam aprisionamentos
Os dois curtas da mostra competitiva nacional e o da Gaúcha apresentados na sexta-feira, fazem um interessante diálogo entre si, os curtas O Que Há em Ti (SP), de Carlos Adriano e Quanto Pesa (MA), Breno Nina e o documentário Cavalo de Santo, de Mirian Fichtner e Carlos Caramez, com suas narrativas que tratam da questão racial, seja pela religião, pela condição social, ou pela história de um país mergulhado em crises humanitárias e acidentes naturais, o Haiti, como mesmo diz o refrão da letra da música homônima de Caetano Veloso e Gilberto Gil. “Pense no Haiti/Reze pelo Haiti/O Haiti é aqui/O Haiti não é aqui”.
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