Mulher do Pai, à primeira vista, pode ser interpretado como um filme repleto de tensão – começando pela sinopse divulgada pela distribuidora afirmando que, após a morte da avó, a protagonista Nalu (Maria Galant) e seu pai Ruben (Marat Descartes) desenvolvem uma relação “perturbadora”. Essa percepção inicial é compartilhada até mesmo pelo ator que faz o papel de Ruben. “A minha primeira leitura, e é engraçado por que é a primeira recepção do público também, era de que alguma coisa terrível iria acontecer. De que ia rolar um incesto, aquela clássica história de um pai violentando a filha”, comenta Marat, em entrevista ao Esquina. “Mas depois que passei pelo filme inteiro percebi que não, não é disso que se trata”.
A tensão não se desenvolve por acaso – o roteiro aborda diversos temas, entre eles a sexualidade dos personagens, principalmente de Nalu. “Eu acho que a sexualidade é uma força vital e tem que ser naturalizada”, explica a diretora e roteirista, Cristiane Oliveira. Com 16 anos, prestes a terminar o colégio, a jovem protagonista passa por um momento cuja palavra-chave é transformação. Acostumada com o ritmo pacato do interior, a morte repentina de sua avó força sua aproximação com o pai – um homem que perdeu a visão na juventude e era completamente dependente da mãe. Enquanto isso, ela lida com os conflitos típicos da adolescência, tendo que decidir se continuará na pequena vila em que mora no Rio Grande do Sul, onde poderá seguir o ofício da família como tecelã, ou se irá para Porto Alegre com sua melhor amiga Elisa.
Quando um uruguaio de 23 anos cruza a fronteira para se encontrar com o tio, a menina-mulher se envolve e os relatos de primeiros beijos que faz à amiga por telefone esquentam. Ouvindo as confissões sobre a recém iniciada vida sexual da filha por acaso, Ruben se choca – assim como qualquer outro pai frente à mesma situação – e passa a encarar suas próprias mudanças. “A história é de uma menina que está desabrochando para a vida”, conta Marat, “desde o embrião, desde o roteiro até o resultado final, o filme lida com essa situação com muita delicadeza e poesia”.
Poesia é o que não falta em Mulher do Pai. Em uma cena tocante, Ruben está apoiado na parede de fachada da casa, arranhando-a com uma de suas mãos. “Esse pai está vivendo esse luto, é difícil saber como lidar e ele está ali encostado em uma parede raspando as unhas como um hábito de criança”, explica Cristiane. “A menina vem e se encosta do outro lado da parede e fica ali cavoucando. É quase como dois irmãos que tem o hábito de cavoucar no mesmo lugar”. Entre eles, há uma porta que dá para um pequeno corredor frequentemente mostrado – um sinal de como a casa também é um personagem, o pano de fundo que mostra desde a distância de pai e filha, separados pelo vão, até o amadurecimento de ambos.
Em outro momento, Nalu enrola sua panturrilha com um fio de lã vermelho feito pela própria família. Para a diretora, esta também é uma reação natural à dificuldade de lidar com o luto. “Às vezes essa tristeza é tão paralisante que você quer sentir alguma coisa, mesmo que seja dor. E ela provoca a dor em si mesma como uma reação à essa confusão de sentimentos que está vivendo”. São essas pequenas simbologias que fazem com que o espectador sinta algo durante todo o filme e trazem identificação.
Em uma análise mais profunda, a cena também entrega um dos fios condutores do roteiro: a sensação de aprisionamento sentida por Nalu ao subitamente se tornar a mulher da casa, ajudante do pai e precisar tomar tantas decisões importantíssimas para seu futuro, enquanto no fim de mundo rural em que vive. “Tem toda a cultura do fiar, que visualmente traz em si uma série de significados”, completa a diretora. “No momento que uma mulher tece, é como se ela estabelecesse as tramas do seu destino. Nalu está ali enredada por essa situação em que ela não sabe muito para onde ir e acho que esse significado simbólico está ali de uma forma bem concreta”.
Além do fiar, a cultura do gado é predominante na região de fronteira em que o filme se passa. Tradicionalmente masculina, nela a mulher assume frequentemente a posição de cuidadora, à exemplo da avó de Nalu. A trajetória da jovem mostra como esse espaço feminino tem sido contestado, conciliando e valorizando as vontades do próprio indivíduo.
Mulheres marcam presença. As mulheres têm um papel de extrema importância na narrativa de Mulher do Pai. A avó é um claro pilar para a família, com uma forte influência apesar do pouco tempo de cena.
Rosário (Veronica Perrota), a professora uruguaia de Nalu, é outra das personalidades fortes que conduzem o roteiro. Ela aparece primeiro como uma amiga e confidente para Nalu, depois faz o mesmo para seu pai – e, apesar de despertar um ciúme sem precedentes na jovem, se torna também uma das razões para que ela tenha coragem de seguir seu próprio caminho. Apesar do convite para ir à Porto Alegre ser de sua melhor amiga Elisa, a primeira pessoa a levar Nalu para fora da vila é Rosário, em um passeio ao Uruguai. “Ela não imaginava deixar a casa do pai a não ser que fosse com outro homem, casando”, diz Cristina, “aceitar o convite de ir à Porto Alegre é uma construção que vai se dando muito pelo apoio de outras mulheres”.
Em determinada cena, quando a menina lhe pede um conselho sobre o rapaz uruguaio, ela confessa que os homens de sua vida são como trens: nunca param, estão sempre de passagem. Apesar da melancolia, Rosário desafia e enfrenta de cabeça erguida a cultura machista do interior. “Acho que o filme fala um pouco dessas relações de independência e autonomia que tem muito a ver com o processo histórico que estamos vivendo, da busca de um espaço e igualdade”, conta a diretora.
Apesar disso, Cristiane explica que colocar mulheres fortes como protagonistas e coadjuvantes não foi feito exatamente de caso pensado: “O filme começou em 2004, em uma época em que nem se falava tanto em feminismo aqui no Brasil. Foi uma construção das personagens mesmo e de como eu percebo que as mulheres apoiam outras mulheres. Foi porque eu vi que essa realidade existe e está aí para ser mostrada”.
Primeira história. Mulher do Pai não é o primeiro roteiro de Cristiane que possui um protagonista cego. Seu primeiro curta, Messalina, tem como protagonista a jovem cega Isabel que atende um telefone público, ao que o estranho do outro lado da linha lhe faz um convite inusitado. A trama surgiu após a diretora ver uma cena parecida na vida real, em uma rua movimentada de Porto Alegre. “Eu achei aquilo muito simbólico. Todas aquelas pessoas passavam por ali apressadas, viam o que estava acontecendo, não quiseram atender... e um cego, que é mais guiado pela audição, atendeu”.
Na época, contou a história para Gilson Vargas, que ministrava um curso de roteiro que ela fazia. “Aí esse cineasta me perguntou ‘e o que será que ele ouviu?’. A partir daí comecei a escrever esse primeiro curta, na oficina dele”. Gilson abraçou o projeto, produzindo-o, e Messalina foi para mais de vinte festivais, ganhando treze prêmios e representando a ida sem volta de Cristiane Oliveira para o mundo cinematográfico.
Comments