É bom logo destacar duas coisas em relação a Mostra de Cinema de Gostoso, que começa sua 8ª edição nesta sexta, 26, e se encerrará no dia 30 de novembro, no município de São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte. Primeiramente, Eugenio Puppo e Matheus Sundfeld entendem muito bem a função curatorial em um festival de cinema. Além disso, há também o trabalho louvável que eles desenvolvem na comunidade local, com a formação técnica de jovens para trabalhar no audiovisual, e a formação de público que o evento realiza na cidade que não tem cinema, trazendo filmes brasileiros que dificilmente seriam vistos pelos moradores da cidade.
Em 2020, a Mostra não aconteceu presencialmente por conta da pandemia de Covid-19, ocorrendo em março deste ano de forma on-line (e você pode conferir a cobertura AQUI). Isso trouxe ainda mais desafios para a dupla de curadores, Puppo e Sundfel, não somente para batalhar os patrocínios, sempre difíceis, mas também para atender as expectativas geradas pelo retorno do festival às areias da bela praia de Maceió, tendo a pandemia de Covid-19 à espreita (o festival é montado na praia de Maceió numa tela gigante e espreguiçadeiras espalhadas).
“Existe uma grande expectativa de toda a comunidade de São Miguel do Gostoso e do público do estado de forma geral, pelo retorno da edição presencial da Mostra de Cinema de Gostoso. Faremos uma edição especial, com um número reduzido de sessões e convidados, para que possamos ter um controle maior de todas as atividades da mostra”, conta os curadores em entrevista ao Esquina. A conversa completa com a dupla pode ser conferida logo abaixo.
Em um ano de crise econômica e social mais aguda por conta da incompetência e desmando do governo Bolsonaro, o festival teve que adaptar a redução de verbas para fazer uma edição, como mesmo explicou os curadores, especial. Diminuíram a quantidade de mostras e de filmes para que eles pudessem ter mais controle sobre o evento em si, mas sem prejudicar a qualidade da linha curatorial do festival de longas e curtas-metragens da mostra competitiva (serão três longas e seis curtas, sendo três deles do Rio Grande do Norte, o estado que sedia o evento).
“Os filmes da Mostra Competitiva congregam duas obras de ficção de diretores estreantes em longa-metragem e um documentário de um diretor mais experiente. São eles: Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso, e A Felicidade das Coisas, de Thais Fujinaga, no primeiro caso, e Rolê: A História dos Rolezinhos, de Vladimir Seixas, no segundo caso. Todos eles têm como ponto em comum o desafio a narrativas e representações hegemônicas, adotando como eixo narrativo as inquietações, conflitos e desejos de personagens marginalizados”, dizem ao Esquina da Cultura.
Priorizando a formação do público local, um dos trabalhos louváveis que o evento realiza, a 8ª edição da Mostra irá abrir a noite de sexta, 26, com um dos filmes brasileiros mais vistos nos cinemas do País e um dos mais comentados desde que passou pela primeira vez no Festival de Berlim em 2019. É Marighella, de Wagner Moura, cineasta que precisou adiar a estreia do longa-metragem nos cinemas do País diversas vezes em decorrência dos ataques e sabotagem do governo de Bolsonaro via a Agência Nacional de Cinema (Ancine).
O público que irá lotar as areias da praia de Maceió, respeitando os protocolos sanitários da pandemia de Covid-19 que serão adotados, poderá acompanhar a trajetória de um dos maiores personagens da famigerada ditadura militar brasileira (1964-1985), o político, escritor e guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969), morto pela polícia política do regime, interpretado com vigor e coragem pelo cantor e ator Seu Jorge. O filme chega no momento em que o País está mergulhado na violência e incompetência deliberada de um governo de extrema direita.
Para encerrar a Mostra de Cinema de Gostoso na noite de 30 de novembro, o aguardado filme de Laís Bodanzky, A Viagem de Pedro, um retrato intimista e particular de dom Pedro I (1798-1834), revelando a faceta do homem privado, atormentado pelo retorno a Portugal e a luta que iria travar com seu irmão, Miguel, para recuperar o trono de uma das filhas, casada com Miguel.
Serão cinco dias de filmes, atividades e debates com os realizadores e profissionais convidados, o que certamente irá agitar culturalmente mais uma vez um dos lugares mais frequentados pelos turistas, a cidade de São Miguel de Gostoso, e o Esquina estará informando tudo para vocês, leitores do nosso site, com uma cobertura completa da Mostra.
Entrevista com os curadores
Esquina da Cultura: Por conta da pandemia de Covid-19, vocês não fizeram a sétima edição, em novembro de 2020, de forma presencial em São Miguel do Gostoso, que terminou acontecendo de forma on-line em março deste ano. Voltando agora ao formato presencial, o que vocês esperam para a 8ª edição da Mostra de Cinema de Gostoso? Em um ano recorde de inscrições, 650, por que a mostra competitiva de longas só terão três produções, enquanto a de curtas são seis, sendo que três deles são do Rio Grande do Norte?
Eugenio Puppo e Matheus Sundfeld: Existe uma grande expectativa de toda a comunidade de São Miguel do Gostoso e do público do estado de forma geral, pelo retorno da edição presencial da Mostra de Cinema de Gostoso. Faremos uma edição especial, com um número reduzido de sessões e convidados, para que possamos ter um controle maior de todas as atividades da mostra. Este número de filmes da Mostra Competitiva se deve por conta da limitação de horário que temos para exibir os filmes na praia do Maceió.
Se exibíssemos muitos filmes, as sessões terminariam de madrugada. Como este ano não faremos a Mostra Panorama e a Mostra Infantil, que eram realizadas em local fechado, no Centro de Cultura da cidade, o número total de filmes é menor para esta edição. Por ser uma mostra de cinema sediada no Rio Grande do Norte, julgamos importante dar visibilidade aos filmes produzidos no estado (sobre a metade dos curtas da mostra competitiva serem do estado).
Esquina: No ano ainda de tantas incertezas e com uma grave crise econômica e social, quais foram as maiores dificuldades na realização de mais uma edição do evento, agora no retorno ao presencial?
Eugenio e Matheus: Além da dificuldade da captação de recursos financeiros, que todos os projetos culturais encaram, este ano os preços da maioria dos serviços e produtos aumentaram consideravelmente. Somando-se a isso as adaptações no projeto necessárias por conta da pandemia da Covid-19, acreditamos que foram as maiores dificuldades.
Esquina: Qual foi o recorte curatorial da mostra competitiva de longas e curtas? O que você destacaria nesta 8ª edição da Mostra?
Eugenio e Matheus: Os filmes da Mostra Competitiva congregam duas obras de ficção de diretores estreantes em longa-metragem e um documentário de um diretor mais experiente. São eles: Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso, e A Felicidade das Coisas, de Thais Fujinaga, no primeiro caso, e Rolê: A História dos Rolezinhos, de Vladimir Seixas, no segundo caso. Todos eles têm como ponto em comum o desafio a narrativas e representações hegemônicas, adotando como eixo narrativo as inquietações, conflitos e desejos de personagens marginalizados.
Nessa mesma chave se encontram os filmes selecionados na categoria curta-metragem da Mostra Competitiva, como Portugal Pequeno, de Victor Quintanilha, Tereza Josefa de Jesus, de Samuel Costa e Céu de Agosto, de Jasmin Tenucci. Suas histórias que contemplam, cada uma à sua maneira, diversas experiências e formas de elaboração da vida, em muitos casos em descompasso com uma realidade cada vez mais insustentável, como no caso da protagonista de Sideral, de Carlos Segundo, produzido no Rio Grande do Norte, exibido no Festival de Cannes, e que faz sua estreia no Estado nesta edição da Mostra.
Outros dois curtas-metragens potiguares apresentam visões distintas sobre a realidade local. Fole, de Lourival Andrade apresenta uma tragédia sertaneja repleta de música e ancorada na relação entre pai e filho, Vale do Vento Eterno, de Pedro Medeiros, que terá sua estreia na 8ª Mostra de Cinema de Gostoso, cria uma singular perspectiva futurista de um mundo não tão distante assim.
O retorno da Mostra de Cinema de Gostoso à Praia do Maceió também motiva a recuperação do reconhecimento dessa comunidade na tela grande, com a exibição de dois curtas-metragens produzidos pelo Coletivo Nós do Audiovisual, formado por alunos dos cursos de formação organizados anualmente pelo evento. Mestre Marciano e Papa-Jerimum documentam as trajetórias de duas figuras muito importantes para São Miguel do Gostoso — Marciano, uma pessoa fundamental para a sobrevivência da tradição do Boi de Reis, e Seu Leonardo, um pioneiro nos campos da hotelaria e da gastronomia da região.
As Sessões Especiais estão compostas por dois filmes com maior inserção no circuito comercial: Marighella, de Wagner Moura, e A Viagem de Pedro, de Laís Bodanzky. Em uma cidade que não possui nenhuma sala de cinema permanente, a exibição desses filmes promove a inclusão cultural e permite que se usufrua dessas obras da maneira mais adequada, com som e projeção de qualidade profissional.
Esquina: Não me lembro como jornalista, curador e crítico de cinema, de assistir a um longa produzido no Rio Grande do Norte. No ano em que o estado emplacou um curta-metragem na mostra competitiva do Festival de Cannes, com Sideral, de Carlos Segundo, que estará na mostra competitiva de curtas de Gostoso, por que o longa Fendas, de Carlos Segundo não entrou na seleção?
Eugenio e Matheus: Fendas foi exibido na última edição presencial em 2019.
Esquina: Quais serão os cuidados protocolares que o festival irá adotar nas sessões abertas na praia de Maceió, levando em consideração que teremos uma quantidade de turistas no nordeste ainda maior por conta do descontrole da pandemia de Covid-19 em parte da Europa e dos EUA e da alta do dólar?
Eugenio e Matheus: Independente de nossa sala de cinema sendo aberta, ao ar livre na praia, seguiremos todos os protocolos necessários como o respeito rigoroso ao distanciamento social em todos os espaços de exibição.
Teremos menos assentos na sala de cinema este ano para que o espaçamento entre as cadeiras seja maior; obrigatoriedade de uso de máscaras de proteção em todos os espaços da Mostra de Cinema de Gostoso; exigência do cartão de vacinação completa à todos os convidados; antes e depois de cada sessão da Mostra, haverá uma equipe de limpeza para realizar a higienização de todos os espaços do evento, incluindo praça de alimentação e banheiros; equipamentos para higienização das mãos com álcool em gel nas entradas de todos os espaços da Mostra; vídeos de instrução exibidos antes de cada sessão, com orientações sanitárias de prevenção ao Covid-19.
Esquina: Qual o retorno que a Mostra de Gostoso dará a comunidade de São Miguel de Gostoso este ano, além do evento, claro?
Eugenio e Matheus: A Mostra de Cinema de Gostoso tem como um de seus pilares a formação de público, com exibições em uma sala popular ao ar livre na praia, em uma região que não possui salas de cinema. O principal elemento deste pilar são os cursos de formação técnica e audiovisual para jovens da cidade.
Desde 2013 foram ministradas 47 oficinas e produzidos 20 curtas-metragens, todos exibidos nas edições da Mostra e em diversos festivais no país. Os cursos são realizados meses antes do início do evento e têm como objetivo proporcionar aos jovens o domínio de diversas áreas da produção cinematográfica.
O conhecimento adquirido pelos(as) alunos(as) é colocado em prática com a realização de curtas-metragens e a participação na equipe de organização da Mostra de Cinema de Gostoso. Os curtas-metragens produzidos pelo Coletivo têm proporcionado a esse grupo de jovens uma visibilidade em âmbito nacional e internacional. Os filmes foram exibidos em dezenas de festivais de cinema, tais como: 12º Los Angeles Brazilian Film Festival (EUA), 30º Festival Internacional de Curtas de São Paulo, 8º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba e 26º Festival de Cinema de Vitória, e licenciados para emissoras como TV Cultura e Canal Brasil.
112 jovens de São Miguel do Gostoso e distritos arredores já passaram pelos cursos de formação desde seu início. A maioria deles se encontra cursando ensino técnico/superior e trabalhando com audiovisual e outras áreas.
Esquina: Os filmes de abertura e encerramento abordam personagens da nossa história recente e da monarquia, Carlos Marighella e dom Pedro I respectivamente. Qual a importância desses filmes (Marighella, de Wagner Moura e A Viagem de Pedro, de Laís Bodanzky) em um dos momentos mais conturbados da política brasileira atual?
Eugenio e Matheus: São importantes principalmente no sentido de irem na contramão do apagamento e do negacionismo da nossa história, impostas pelo atual governo. Mesmo com todo o boicote que Marighella sofreu, foi uma vitória muito grande de Wagner Moura e sua equipe de terem conseguido lançar um filme tão fundamental para a nossa história, abordando a tragédia que vivemos durante o período da ditadura militar (1964-1985) e mostrando a luta de tantos jovens inconformados com essa barbárie, que hoje muitos afirmam não ter ocorrido. O filme apresenta esse registro, incontestável. Ainda sobre Marighella, o filme foi realizado para ser visto na tela de cinema, em uma tela grande, e assim será exibido em Gostoso, fazendo jus à proposta do diretor. Quanto ao filme A Viagem de Pedro, a experiente diretora Laís Bodanzky realizou este filme impressionante, que trata de um momento importante e pouco documentado de nossa história. Um filme corajoso, com ótimas atuações, um mergulho no universo interior de D. Pedro I. Vamos exibir o filme na sessão de encerramento, sendo esta a segunda exibição no Brasil (o filme teve sua estreia no Brasil na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo realizada de forma presencial e on-line na segunda quinzena de outubro e início de novembro).
Filmes selecionados
MOSTRA COMPETITIVA
LONGAS-METRAGENS:
Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso (CE)
A Felicidade das Coisas, de Thais Fujinaga (MG/SP)
Rolê – Histórias dos Rolezinhos, Vladimir Seixas (RJ)
CURTAS-METRAGENS:
Céu de Agosto, de Jasmin Tenucci (SP)
Fole, de Lourival Andrade (RN)
Portugal Pequeno, Victor Quintanilha (RJ)
Sideral, de Carlos Segundo (RN)
Tereza Joséfa de Jesus, Samuel Costa (SP)
Vale do Vento Eterno, de Pedro Medeiros (RN)
SESSÕES ESPECIAIS
Marighella, de Wagner Moura (RJ)
A Viagem de Pedro, de Laís Bodanzky (SP)
MOSTRA COLETIVO NÓS DO AUDIOVISUAL
Mestre Marciano, de Igor Ribeiro e Rubens dos Anjos (RN)
À Beira Mar, de Clara Leal e Harcan Costa (RN)
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