Uma das formas de identificar a atemporalidade de uma obra é perceber como ela se insere em novos tempos e contextos anos e anos após a sua concepção. A nova montagem de Quando as máquinas param, texto de Plínio Marcos dirigido por Kiko Rieser é um desses casos. Transmitida gratuitamente no canal do YouTube do CCSP (Centro Cultural São Paulo), a peça escrita em 1967 parte de uma situação cotidiana para mergulhar nas mazelas causadas por problemas crônicos como o desemprego, o Estado falido, a violência doméstica e o machismo.
Ao contrário de outras peças de Plínio Marcos, famoso por trazer ao centro do palco as agruras de um submundo urbano cheio de párias, marginais, prostitutas e outros excluídos, Quando as máquinas param adentra na vida privada de uma classe média frágil e instável que se apoia em pilares de tradição, família e propriedade.
Zé e Nina levam uma vida cheia de planos e sonhos até que uma demissão em massa deixa Zé desempregado. A falta de estudo e de ofício dificultam que Zé encontre um novo trabalho. Somado a isso, o dinheiro das costuras da submissa Nina não é suficiente para fechar as dívidas da casa, criando um clima de humilhação e revolta que apodrece um casamento aparentemente feliz. A violência que dá o clímax da obra cresce de maneira natural e, portanto, assustadora em cena.
A habilidosa direção de Kiko Rieser se aproveita do momento de isolamento social para transformar teatro em tela, mas sem perder a essência de um palco. Feita em preto e branco e transmitida em plano-sequência dentro de um apartamento, o espectador se depara com um cenário claustrofóbico e desconfortável. O habilidoso jogo de cena do diretor não permite que o meio transforme a linguagem teatral em cinematográfica.
O mesmo pode se dizer das atuações de André Kirmayr como Zé e Larissa Ferrara como Nina. Ambos entregam uma interpretação de palco na live-teatro. Confortável em cena, Kirmayr se aproveita da escrita essencialmente masculina de Plínio Marcos para ser grande desde a primeira aparição. Larissa Ferrara também compõe bem sua Nina, uma mulher submissa e feliz com o marido, que demonstra força nas desgraças diárias e é o sustentáculo da casa. A atriz consegue dar exatamente à personagem o tom que ela necessita, construindo pouco a pouco uma figura feminina que evolui e se transforma constantemente - uma postura de amadurecimento e libertação em contraste ao marido, cuja fraqueza se intensifica conforme a relação de poder estabelecida entre o casal se deteriora.
A máquina da qual fala Plínio Marcos é a estrutura de bem-estar social que nunca funcionou no Brasil. É a exploração do cidadão como trabalhador. O machismo que inventa a falácia de “mulheres azedas”, obrigadas a sustentar sozinhas as responsabilidades de uma casa – algo que fica muito claro na cena em que Zé deixa de procurar emprego, por medo do fracasso, para espairecer jogando bola com as crianças da rua. Nesse momento, Zé representa uma legião de homens cujos sonhos se afogaram numa juventude já murcha, tornando-os em homens covardes e imaturos que se infantilizam quando a música não toca de acordo com a dança estabelecida por eles mesmos. O panorama pessimista que se cria ao longo da apresentação faz com que o final da história seja previsível e, ainda assim, chocante. Escrita há mais de 50 anos e apresentada num contexto de desemprego e aumento galopante da violência doméstica, Quando as máquinas param mostra que Plinio Marcos não é só um profundo conhecedor da marginalidade social, mas também um ótimo desenhista da vida privada das “famílias de bem”.
Informações:
Quando as máquinas param, de Plínio Marcos.
Com: André Kirmayr e Larissa Ferrara.
Direção: Kiko Rieser
Quando: segundas e terças-feiras, às 20h. Até 20/04.
Onde: CCSP no YouTube. Clique aqui para acessar.
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