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Foto do escritorMatheus Mans

Crítica: 'Laerte-se' faz relato emocionante, mas falha ao não se aprofundar

Atualizado: 11 de jan. de 2022


Logo nas primeiras cenas de Laerte-se, a cartunista Laerte está pintando uma tela e com um olhar enviesado à câmera, como se fosse um estranho observando-a. Ela não está confortável com a situação e não é possível ver de maneira clara o que está sendo pintado. A câmera não é um meio para informar; para Laerte, é como um perigo em potencial. Nas cenas seguintes, então, entendemos o que a fez se sentir assim: após se assumir como mulher, a artista não se sentia segura em dar entrevistas. Afinal, ela estava se descobrindo, tornando ainda mais difícil a tarefa de se descortinar para uma câmera.

Assim, o documentário Laerte-se, que chegou à Netflix na última semana e estreou a presença do Brasil neste gênero dentro da plataforma, é um grande exercício de descoberta para Laerte. Ali, a quadrinista se despe -- literal e figurativamente -- para mostrar quem ela é, o que ela deseja e o que podemos compreender de sua essência. Ao longo de seus 100 minutos, a produção, de Eliane Brum e Lygia Barbosa da Silva, é um verdadeiro retrato pessoal, íntimo e complexo de Laerte, que assumiu sua transgeneridade em 2010.

O contrário da premissa, porém, também é verdade: para o público, Laerte-se também é um ótimo exercício de descoberta. Extremamente importante na cena dos quadrinhos, Laerte mostra como é importante compreender a si mesmo -- seja lá em qual idade for -- e compreender os outros ao seu redor. Tudo isso por meio de histórias, relatos, experiências e, claro, tirinhas desenhadas por ela mesma e que são animadas digitalmente para a produção da Netflix.

Tudo isso, no documentário, é contado de maneira direta pela própria Laerte, em entrevistas feitas na própria casa da quadrinista. É um exercício incrível ver a artista em tarefas cotidianas e do dia a dia, como pintar as unhas, ir na casa de um conhecido para arrumar o computador ou, ainda, vê-la sentada na calçada com a gata tetraplégica -- cena, aliás, que rende espontaneamente um dos melhor momentos de toda a produção.

Além disso, como é de se esperar, Laerte conta detalhes inspiradores de sua vida, como a relação com a família após a transgeneridade, e algumas metáforas muito bem observadas por ela, como o caos na casa refletir o seu interior. É emocionante, intenso. Difícil não se emocionar com o que é mostrado na tela.

No entanto, mesmo com um material tão rico em mãos,Brum e Lygia falham ao não aprofundarem a vida de Laerte. Em formato de um grande relato, o público conhece apenas a visão de Laerte dos fatos e das histórias -- o que não significa ser um relato ruim, mas empobrece a narrativa em seu todo. Seria muito mais interessante se fosse construída uma visual pluridimensional da artista, ao fazer entrevistas com filhos, amigos ou a manicure que a acompanha e que recusa a tratá-la com o artigo masculino. Uma pena que esses relatos tenham passado tão perto de entrar na produção, mas acabaram ficando de lado.

Outra coisa que incomoda -- mas que não tira o brilho -- é a diferença de apuro estético nas várias cenas e momentos da narrativa. No começo, quando Laerte olha enviesado para a câmera, existe um grande cuidado visual, mas abandonado ao longo da filmagem. O longa-metragem acaba com um visual mais jornalístico do que documental. Novamente, isso não tira o brilho ou o impacto da produção como um todo, mas deixaria o conteúdo mais interessante e condizente com o proposto pela produtora.

No final, porém, o resultado é positivo e Laerte-se, primeiro documentário brasileiro na Netflix, faz uma boa estreia. É emocionante, forte, impactante e maravilhoso de ser assistido -- mesmo com a falta de apuro estético e a ausência de aprofundamento. Muito bom saber que a história de Laerte, tão importante para o cenário artístico brasileiro,será a primeira grande história documental a ser divulgada em mais de 190 países pela Netflix. Vale assistir.


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