O jornalista Jotabê Medeiros trabalhou mais de 20 anos no jornal O Estado de São Paulo no Caderno 2, cobrindo música. Hoje, edita a parte cultural da revista Carta Capital. Além da biografia que ele escreveu sobre Belchior, em 2017, recentemente o jornalista lançou outro livro, mas agora sobre o cantor e compositor Raul Seixas – Não Diga Que a Canção Está Perdida.
Publicada pela editora Todavia, a biografia Belchior – Apenas um Rapaz Latino-Americano, lançada em agosto de 2017, um pouco mais de um ano da morte do cantor, em 30 de abril de 2016, segundo JB, estava sendo escrita há quase dois anos. “Eu estava tentando compreender a obra dele, mais do que sua vida, mas o mistério do desaparecimento pedia resolução”.
JB revelou que, desde o lançamento da biografia de Belchior, coleta material inédito para a segunda edição do livro, que ele anseia que logo seja publicada. Abaixo, confira a conversa completa entre o Esquina e o jornalista JB sobre Belchior, seu livros e esta nova edição:
Esquina da Cultura: O álbum Alucinação, lançado originalmente em 1976, nas suas dez faixas, Belchior trouxe seus temas mais caros, como a violência, a solidão, sonhos desfeitos, o abandono, o desencontro amoroso e a necessidade do novo e da liberdade do individuo diante de uma sociedade e um estado massacrante. Como classificar a obra de Belchior. Era um artista descrente do convívio da sociedade em um estado opressor?
Jotabê Medeiros: Creio que era um artista dedicado a traficar, pela via da música popular, fragmentos da grande tradição literária brasileira e universal, estilhaços de questionamentos existenciais relacionados à cultura popular, ao mesmo tempo que propunha o debate sobre a identidade nacional. Na base disso, estava a atualização constante dos temas do cotidiano político e social, que por vezes parecem se sobrepor aos demais. Belchior era um homem do seu tempo, mas o seu tempo era o tempo filosófico, uma contemplação existencial.
Esquina: A obra de Belchior tem uma dimensão política. Mas essa dimensão não acontece de forma explícita, presente nos artistas mais engajados da MPB, nos anos 1970. Por conta disso, sua obra política não ficou datada e fala muito dos tempos que estamos vivendo hoje na política. Você concorda?
JB: Belchior foi sofisticado demais para a ação da censura, que não o compreendia mesmo quando o tesourava. É o caso, por exemplo, de canções como Populus, cujo substrato é o latim. Era refinado demais para um tempo tão monolítico. Mas ele foi muito político, talvez um dos mais políticos atores da cultura da MPB em sua época, abordando da Operação Condor à desaparição de inimigos políticos do regime em suas canções.
Esquina: O autoexílio de Belchior no seu próprio país foi em decorrência do seu temperamento outsider ou conta também nossa incapacidade de valorizar artistas do passado, que muitas vezes caem no esquecimento?
JB: Creio que há um manifesto no final da vida de Belchior, um manifesto feito de sua própria decisão de exilar-se da carreira, dos fãs e da família. É uma ruptura radical. Entretanto, ele não a defendeu artisticamente, em canções e versos, como fez em quase toda a trajetória. A inexistência (ou o sumiço) daquilo que produziu durante 10 anos de desaparecimento não permite concluir o que ele pretendeu, mas é como o silêncio de Marcel Duchamp: a ideia é questionar o ruído constante. No caso de Belchior, a intenção foi romper com os grilhões da produtividade imposta, da panaceia social.
Esquina: Quando Alucinação foi lançado em 1976, o crítico Sérgio Cabral classificou o disco de "Desperdício de talento". Como foi a recepção desse disco na época. E por que ele é considerado a obra máxima do cantor Belchior. Como você enxerga esse álbum na discografia do artista?
JB: O que talvez Sergio Cabral não tenha entendido é que Belchior viu a MPB justamente como um território fértil para o exercício do talento sem fronteiras. Hoje mesmo, lendo Ferreira Gullar, eu me dei conta que há pontos de contato fabulosos entre seus primeiros poemas, muito radicais, e a lírica de Belchior, como em Homem Comum. Belchior atou pontas, reacendeu motes com sua poesia. Alucinação, por uma série de fatores, é justamente a obra-prima, um disco que é perfeito da primeira à última música, que não se pode tocar de outro jeito senão na ordem que ele dispôs as peças. Tudo está no seu lugar. É um caso raro na MPB. Os arranjos, as frases que viraram grafites ("Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro"). A evocação de Dylan e Cego Aderaldo. Eu digo que Alucinação é uma decorrência do primeiro álbum, de 1974, Mote & Glosa, assim como é a pedra fundamental dos três discos seguintes, também perfeitos.
Belchior viu a MPB justamente como um território fértil para o exercício do talento sem fronteiras (...). Belchior atou pontas, reacendeu motes com sua poesia.
Esquina: Você lançou a biografia do cantor logo após a sua morte. O livro já estava sendo escrito há quanto tempo? Era o momento certo de lançá-lo. Na segunda edição, quando for lançada, terá material inédito?
JB: O livro vinha sendo escrito há quase dois anos. Eu estava tentando compreender a obra dele, mais do que sua vida, mas o mistério do desaparecimento pedia resolução. Em fevereiro, fui procurado por uma editora. Em abril, finalizei, mas adverti o editor que faltava o último capítulo. Então ele morreu, e eu me dei conta que o capítulo final, que eu nunca desejei, tinha chegado e eu precisava equacioná-lo. Em agosto, o livro foi lançado. Estou coletando material inédito desde então, e anseio muito por uma segunda edição.
Esquina: Se fala muito da similaridade da obra de Belchior com a crônica de Bob Dylan. Você concorda com essa semelhança, e quais os outros artistas que dialogam com a obra de Belchior?
JB: Belchior só soube de Bob Dylan em 1972, quando ganhou um disco de presente da mulher. Até então, não tinha ouvido com atenção. Pirou. Mas já estava esboçada a semelhança pela natureza - o canto quase falado, os versos quilométricos às vezes, a entonação dramática, a ligação sanguínea com os simbolistas. Fora Dylan, Belchior é mais próximo da poesia, dos poetas, do que da MPB propriamente dita, embora amasse Caetano.
Esquina: Em termos de gênero, Belchior trabalhou com um pouco de tudo, desde rock, blues, passando por baião, e melodias pop. Era um artista aberto a tudo?
JB: Como não fosse um músico extraordinariamente dotado, ele não tinha os mesmos dogmas dos músicos virtuosos. Abraçava tudo, deglutia tudo e transformava em música ao seu estilo. Por causa disso, dessa abertura, teve uma fase em que passou a ser visto como um cantor brega.
Esquina: Por que Belchior decidiu se afastar de tudo? Se falava no retorno dele em alto estilo, por que não aconteceu? Ele morreu amargurado?
JB: Creio que ele sonhasse com o retorno, mas a sua opção franciscana o impeliu a um caminho sem volta. Não planejava viver eternamente longe de si mesmo, mas foi assim que morreu. Não estava amargurado, apenas confuso, segundo seus interlocutores. Confuso e ligeiramente alienado da realidade.
Esquina: Qual a fortuna crítica da obra de Belchior hoje?
JB: Ampliou-se muito a quantidade de artigos, ensaios e teses sobre a trajetória de Belchior após sua morte. A doutora Josy Teixeira, cuja teses de mestrado e doutoramento são dedicadas ao artista, é hoje quem produz o melhor pensamento crítico sobre Belchior. Há diletantes como eu, que buscam entender o fascínio de uma obra grandemente subestimada pelo seu País e que só agora começa a adquirir o papel que lhe cabe na vida social brasileira.
BELCHIOR: Apenas um Rapaz Latino-Americano
Editora: Todavia
Autor: Jotabê Medeiros
Páginas: 240
Preço: 49,90
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