Um seminário internacional que começa terça-feira, 23, na sede do Instituto Moreira Salles (IMS) em São Paulo, irá trazer os resultados das análises científicas feitas em laboratórios dos experimentos fotográficos realizados pelo francês Hercule Florence (1804-1879). O debate chega 190 anos depois do início de suas tentativas para fixar a imagem, em 1833, na Vila de São Carlos (atual Campinas/SP), onde residia, depois de ter vindo para o Brasil e participado como um dos desenhistas da Expedição Langsdorff -- que foi uma viagem de estudos da História Natural feita no Império do Brasil pelo médico alemão naturalizado russo, barão Georg Heinrich von Langsdorff, que era cônsul da Rússia no país, e patrocinada pelo Império Russo entre os anos de 1825 a 1829 e que teve como um dos desenhistas o francês Hercule Florence.
Um dos organizadores do evento, o fotógrafo, educador e gestor de acervo do IMS, Milliard Schisler, entrevistado pelo Esquina por vídeo-chamada, disse que “a descoberta do processo fotográfico de Hercule Florence aconteceu em 1833, na então Vila de São Carlos (atual Campinas/SP), quando buscava processos alternativos para a impressão gráfica. Encontrar técnicas de reprodução simples e eficazes, uma preocupação que já o levava à criação da Polifonia”, e que resultaram no seu desafio da fixação permanente e, portanto, de encontrar maneiras para fixar a imagem, já que elas não duravam depois de expostas a luz.
Mas, afinal de contas, quem foi Hercule Florence
Nascido em 28 de fevereiro de 1804, em Nice, que na época era ocupada pela República Francesa, passou a infância em Mônaco e era um leitor de um dos livros mais populares da sua época, Robinson Crusué, do escritor Daniel Defoe, desde muito cedo Florence tinha aptidão para desenhar, para ciências e, assim como Crusoé, pensava em viajar e se aventurar nas descobertas fascinantes do Novo Mundo.
Depois de uma viagem pela América Espanhola quando tinha 19 anos, em uma missão diplomática, Florence chega no Rio de Janeiro em abril de 1824, onde começa a trabalhar numa loja de tecidos, até ser convidado para participar como um dos desenhistas da segunda etapa da Expedição Langsdorff (1825-1829). Terminou a vida no Brasil, quando casou em 1830, com sua primeira esposa, virou agricultor, dono de uma gráfica e de uma numerosa prole, fruto de dois casamentos, deixando vários herdeiros e várias gerações.
Inventor, desenhista, pintor, tipógrafo e naturalista, Florence era, segundo, Schisler, “muito plural. Fazia coisas diferentes. Desenhava, tinha habilidades diferentes. Criou também a Poligrafia que é um método de impressão, que estudou pelo resto da vida, além da zoofonia, estudo da linguagem dos animais. Era extremamente engajado em uma série de atividades’.
Graças ao trabalho pioneiro sobre Hercule, de autoria de Boris Kossoy, Hercule Florence, a descoberta isolada da fotografia no Brasil, com edições no México, Espanha, Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos, nos anos de 1970, e do Instituto Hercule Florence (IHF), fundado em 2005, por seu tetraneto, Antonio Hercule, que hoje é um dos conselhos da instituição, o legado, a importância e os trabalhos desse inventor por excelência chegaram até os nossos dias, muito por conta da preservação dos seus escritos sobre suas experiências e invenções.
Um seminário internacional realizado por muitas coincidências e o acaso determinante
Em 2015, uma das descendentes do Hercule Florence encontrou por acaso duas fotografias do parente inventor que estavam com uma outra pessoa da família Florence e que chegaram nas mãos de Antonio Florence, advogado, tetraneto de Hercule Florence, fundador do IHF e autor do livro Intervalos Acidentais (Fotô Editorial, 2017). “Encontrei-as com uma parente, que são duas fotografias, uma de um diploma maçônico e outra de rótulos de farmácia, que hoje estão no acervo IHF, em 2015”, conta por videochamada Antonio Florence ao Esquina.
Antonio Florence procurou Milliard Schisler, que na época não trabalhava ainda no Instituto Moreira Salles (IMS) e Patricia de Filippi que sugeriram que levassem os objetos para serem analisados no laboratório do Instituto de Física da USP, por meio da professora do departamento, Márcia Rizzutto, para detectar quais produtos químicos existiam nas imagens e se de fato aquilo se tratava de uma fotografia. “Os estudos ficaram inconclusivos, poderia ser ou não ser uma fotografia. Não dava para afirmar categoricamente que se tratavam de uma fotografia”, conta Schisler. Ou seja, se tinham elementos químicos usados no processo fotográfico na época em que Hercule Florence fez seus primeiros experimentos, em 1833.
Numa conferência em 2018, Milliard Schisler se encontrou meio que por acaso, numa fila para pegar cerveja, com Art Kaplan, cientista associado no Getty Conservation Institute, de Los Angeles, nos Estados Unidos, e comentou com ele sobre os objetos fotográficos de Hercule Florence que precisavam passar por uma análise laboratorial conclusiva. Kaplan ficou entusiasmado e topou imediatamente. “Vamos fazer essa pesquisa”, disse ele para Schisler, e que seria feita no Getty Consevation Institute.
Mas outras coincidências e acasos iriam acontecer ainda para que tudo pudesse se encaixar. Outro importante laboratório entraria nessa “epopeia”, que seria o Laboratório HERCULES, da Universidade de Évora, em Portugal, um super laboratório, segundo Schisler, patrocinado pela União Europeia. Entra aí outro personagem dessa fascinante história, António Candeias, professor Catedrático do Departamento de Química e Bioquímica da Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade de Évora e fundador do Laboratório HERCULES, onde também foi um dos diretores, que, assim como Art Kaplan, ficou entusiasmado para participar do projeto laboratorial dos objetos de Hercule Florence.
Assim como a Expedição de Langsdorff, cheia de imprevistos e contratempos, as análises físico-químicas dos objetos de Hercule Florence teriam que esperar, veio a Pandemia de Covid e, com ela, a impossibilidade que o material fosse analisado, agora por dois laboratórios. O que aconteceu somente em junho de 2022, e com a entrada de uma importante instituição brasileira, a do Instituto Moreira Salles, já que Milliard Schisler passou a trabalhar no IMS como gestor de acervo. Outra importante coincidência era que outro objeto de Hercule Florence poderia ser analisado também, uma fotografia de rótulos de farmácia que pertencia ao acervo do IMS.
Antonio Florence e Miliard Schisler, organizadores do Seminário Internacional, de posse do resultados das análises físico-químicas dessas três fotografias de Hercule Florence, formataram o evento que acontece entre terça, 23/5 e quarta, 24/5, pela manhã e a tarde na sede do IMS na Paulista (as inscrições para 150 pessoas se esgotaram rapidamente), com convidados que direta ou indiretamente participaram dessa verdadeira epopeia; como convidados internacionais e do Brasil, como Boris Kossoy, Art Kaplan, António Candeias, Márcia Rizzutto. Sergio Burgi, Milliard Schisler, Antonio Hercule, Patricia de Fillipp, Grant Romer, entre outros (Veja programação completa no final da matéria).
SEMINÁRIO | PROGRAMAÇÃO
23/05/2023 (terça)
9h -- 9h30: Recepção e credenciamento
9h30 -- 10h: Apresentação
João Fernandes (IMS), Sergio Burgi (IMS) e Francis Melvin Lee (IHF)
10h -- 11h: Uma conversa com Boris Kossoy
Apresentado por Antonio Florence (IHF) e Grant Romer (Academy of Archaic Imaging).
11h30 -- 12h: A história das análises
Apresentação dos passos que levaram às análises no Laboratório HERCULES, com Patricia de Filippi, Márcia Rizzutto (Física, USP), Millard Schisler (IMS) e António Candeias (Universidade de Évora).
14h -- 15h: Art Kaplan (Getty) e António Candeias (Universidade de Évora)
Apresentação dos resultados das pesquisas feitas no laboratório HERCULES.
16h -- 17h: Grant Romer (Academy of Archaic Imaging) -- A fotografia antes de 1839 -- as primeiras conquistas da fotografia.
17h -- 17h30: Ariadna Romer (Academy of Archaic Imaging) -- Uma abordagem pela dúvida de Tomé para entender as realizações fotográficas de Florence.
24/05/2023 (quarta)
9h -- 9h45: Iara Schiavinatto (UNICAMP) -- Algumas questões sobre a materialidade em Hercule Florence.
9h45 -- 10h30: Maria Inez Turazzi (Historiadora, UFF/Labhoi e CBHA) -- Hercule Florence e “a arte de inventar”, entre os séculos XIX e XXI.
11h30 -- 13h: Artistas contemporâneos que revisitaram as técnicas de Hercule Florence.
Adrià Julià, Letícia Ramos e Lívia Melzi. Moderado por Fernanda Pitta (MAC-USP).
15h -- 16h: Antonio Fatorelli (ECO, UFRJ) -- A atualidade de Hercule Florence.
16h -- 17h30: Futuras imagens, futuros da imagem.
Ingrid Hoelzl (teórica visual) e Silvana Bahia (Olabi). Moderado por Millard Schisler (IMS).
18h -- Encerramento: Francis Melvin Lee (IHF) e Sergio Burgi (IMS)
Comentarios