Numa viagem que fez para a cidade de Itaiçú, interior da Bahia, o já consagrado cantor e compositor Gilberto Gil diz que aquele lugar, como nenhuma outra cidade em que morou, nem a Salvador do seu nascimento, lhe deu“todo olhar, ouvidos e coração” para o mundo, com “seus mistérios e interrogações”.
Gil fala das cores que a cidade, com casinhas de janelas e portas coloridas, deixaram para o seu olhar de menino. Ele morou em Itaiçú até próximo de completar 10 anos, quando seu pai, o médico José Gil, se mudou com a família para trabalhar. Eles voltariam para Salvador em 1952. No depoimento, Gil diz que “Itaiçú foi a base de toda permanência de imagem do mundo real em mim. Aqui foi uma década gravada a fogo”.
Essa permanência do mundo, aliás, ele experimentaria como artista da música popular brasileira ao abandonar uma carreira de Administração de Empresa, curso que ele fez entre 1961 a 1964 na Universidade Federal da Bahia. Foi lá que ele conheceu Caetano Veloso, parceiro de toda uma vida, inclusive do Movimento Tropicalista que eles fizeram juntos com Tom Zé, Torquato Neto, Gal Costa, Rogério Duarte, Nara Leão, etc, em 1967.
Influenciado também por Luiz Gonzaga, que ele escutava no rádio e nas festas juninas em Itaiçú; pelos violeiros e cantigas religiosas nas procissões que passavam em frente a sua casa; e, posteriormente, pelas músicas praieiras de Dorival Caymmi, quando voltou para Salvador, e pela batida bossanovista do violão de João Gilberto, que transformaria para sempre os artistas da Tropicália, já no Rio de Janeiro.
As outras influências artísticas aconteceram em Londres, quando se exilou com a família e Caetano Veloso, por conta da ditadura militar, em 1970. Lá, teve contato profundamente com a contracultura, os Beatles e Jimi Hendrix. Ali, Gil fez sua “refazenda”, aproveitando do caleidoscópio cultural da época e do lugar.
Mas o Brasil, o chamou de volta, para ele escrever algumas das belas páginas da Música Popular Brasileira, com os álbuns: Expresso 2222 (1972), ano de retorno ao país, Refazenda (1975), Refavela (1977), Realce (1979), Extra (1983), Quanta (1997), Eu Tu Ele (2000), trilha sonora para o filme homônimo de Andrucha Waddington, Fé na Festa (2010), Gilbertos Samba (2014), álbum em homenagem a um dos seus mestres, João Gilberto. E agora com Ok, Ok, Ok, lançado em 2018, fruto das suas experiências com uma grave doença renal em 2016, que quase o levou a morte.
Nesse álbum, Gil reconstitui toda sua trajetória de vida e de profissão, com suas perdas familiares. Dentre elas, a do filho Pedro Gil, morto em decorrência de um acidente de carro no Rio, em 1990; dissabores da vida, como a prisão por porte de maconha, em 1976; e suas alegrias, com o nascimento de filhos e netos, a relação com a esposa Flora, e a gratidão aos médicos que cuidaram da doença e amigos que o visitaram no hospital.
São músicas compostas por um artista de 76 anos, com sua serenidade e sabedoria. Mas também é o olhar da criança que ficava fascinado com as cores de Itaiçú, com seus mistérios e indagações. É um álbum de um homem que precisa expressar sua gratidão diante de tanto afeto e amor, dos amigos e familiares, que teve durante o período de tratamento da doença renal, mais também que se preocupa com o mundo ao redor.
Apesar de ser um álbum de afeto e amor, com serenidade e sabedoria, o artista não se furta em falar do mundo atual. Com tanta notícia vinda das redes sociais, que ele questiona em Pela Internet 2, e da necessidade que ele se expresse sobre assuntos atuais e tão urgentes, como em Ok, Ok, Ok, que dá título ao álbum.
“Ok, ok, ok, ok/ Já sei que querem a minha opinião/Um papo reto sobre o que eu pensei/ Como interpreto a tal, a vil, situação/(...) Penúria, fúria, clamor, desencanto/Substantivos duros de roer/Enquanto os ratos roem o poder/Os corações da multidão aos prantos!/Alguns sugerem que eu saia no grito/Outros que eu me quede quieto e mudo/E eis que alguém me pede ‘encarne o mito’/’Seja nosso herói’, ‘resolva tudo’”.
Gilberto Gil não quer ser “mito”, e tampouco “Salvador da Pátria”. Quer ser, sim, um homem/artista em constante comunhão consigo, com a vida, com os afetos dos outros. Quer olhar para tudo isso, com serenidade e humildade. Um olhar de quem continua a enxergar as cores de Itaiçú de sua infância, que permanecem como uma prece em sua alma de artista genuinamente popular. “Rezarei por ti todos os dias/Rezarás por mim/Num pacto de oração e de energia”, diz ele, em forma de mantra na música Prece.
Ele respondeu brevemente por e-mail ao Esquina, antes de retornar a São Paulo para apresentar a turnê do seu álbum Ok, Ok, Ok, no Tom Brasil, neste sábado (22), com a sua banda composta por Bem Gil, direção musical, guitarra e violão, Domenico Lancelloti, bateria e percussão, José Gil, baixo, Bruno Di Lullo, baixo, Danilo Andrade, teclados, Thiagô Queiroz, sopro, Diogo Gomes, sopro, Nara Gil, vocalista.
Esquina da Cultura: Depois de nove anos, você lança um álbum de inéditas, em 'Ok, Ok, Ok', com 15 músicas que tratam, entre outros assuntos, de afeto e restauração do corpo, e por que não dizer da alma. De que maneira, a sua doença de 2016 contribuiu para essa compreensão em relação a vida, a família e os amigos?
Gilberto Gil: Foi um período de internações, tratamentos, e o tempo todo eu tive a família, os médicos, que viraram amigos, e os amigos por perto. Fui muito cuidado, acarinhado e obviamente isso ajudou muito em minha recuperação e serviu mesmo de inspiração para as novas composições.
Esquina: As músicas desse novo álbum são dedicas à família, aos netos e esposa, amigos, como em 'Yamandu', homenagem ao violonista Yamandú Costa, e aos médicos que trataram de sua doença. São músicas recheadas de afetos e gratidão. Fale um pouco sobre essas composições...
Gil: A saída do tratamento e da internação provocou em mim uma vertigem de composições, uma volúpia por compor e assim foram saindo todas essas músicas e mais outras e mais outras que compus para Roberta Sá [a cantora lançou o disco Giro, com composições de Gilberto Gil e dele com outros compositores, entre eles, Ben Jor e a própria cantora].
Esquina: Ao compor 'Se Eu Quiser Falar Com Deus', você diz na letra que precisa ficar a sós, apagar a luz, se calar e ficar em paz para falar com Deus. Quando estava se restabelecendo da doença, você se aproximou ainda mais de Deus. Como você lida com a crença e a religião?
Gil: [A entrevista foi feita por e-mail, e essa pergunta possivelmente passou desapercebida pelo artista, já que ele não a respondeu].
Esquina: Na música 'Pela Internet', em 1996, você comentava as novidades que o mundo da internet poderiam trazer na vida das pessoas. Ao escrever a continuação, 'Pela Internet 2', você questiona os benefícios das redes sociais e a profusão de tantas notícias nesse mundo da pós-modernidade. Esse 'admirável mundo novo' lhe traz mais aflição ou esperança?
Gil: Me traz um mix das duas coisas. Ora eu acho que é bom demais, ora eu acho insuportável tanta informação irrelevante se espalhando por aí.
Esquina: Ao falar de política, nesse novo álbum, você traz um discurso mais conciliatório, mais tolerante, e fala de uma sociedade que tem que buscar seu bem comum por meio do diálogo, do afeto e do entendimento. Diante de tanta polaridade na política, com discursos de ódio e de intolerância, como chegar num diálogo que restabeleça o entendimento?
Gil: Está difícil a situação no Brasil por conta dessa imensa intolerância!
Esquina: Você disse numa entrevista que Jair Bolsonaro precisava de mais oração. É dessa maneira que você o enxerga, um político que precisa de oração?
Gil: Ele precisa de muita oração para diminuir o ódio dentro dele.
Esquina: O que o envelhecimento lhe trouxe?
Gil: Muita Paciência
SERVIÇOS
O que? Gilberto Gil “Ok, Ok, Ok”
Onde? Tom Brasil. Rua Bragança Paulista, 1281 – Chácara Santo Antônio
Quando? 22/06 às 22h
Quanto? De R$ 100 a R$ 240
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