Ainda que O Farol seja o segundo longa-metragem de Robert Eggers, logo de início mostrou a que veio - com um cinema nada tradicional, que explora o terror e o suspense de uma maneira extremamente simbólica. Um dos mais talentosos de sua nova geração, o diretor se afastou dos convencionais jumpscares e trouxe histórias que exigem do espectador uma maior dedicação e consequente elaboração, para assim captar a mensagem que pretende passar.
Talvez ainda mais complexo que A Bruxa, seu longa de estreia, O Farol é um filme que confunde o público com muita facilidade. É totalmente normal, e até um pouco esperado, sair do cinema sem entender absolutamente nada -- como foi o meu caso, em um primeiro momento. Cheio de simbolismos e homenagens à diferentes mitologias, Eggers torna seu novo lançamento uma obra a ser decodificada.
Passível de inúmeras interpretações, reunimos alguns elementos que norteiam uma possível explicação sobre o filme e seu significado mais profundo. Para tal, obviamente, serão revelados spoilers ao longo do texto. Para aqueles que preferirem a crítica sem nenhum tipo de spoiler, basta acessar nossa crítica realizada ao longo da Mostra Internacional de Cinema.
Antes de tudo, é importante partir de uma frase dita por Robert Pattinson ao aceitar o papel:
"Eu não quero fazer um filme sobre um farol mágico. Eu quero fazer um filme sobre a porra de uma pessoa louca".
Portanto, desde o começo já descarto qualquer possível aspecto sobrenatural para explicá-lo. Da maneira mais direta possível, acredito que a principal teoria a respeito de todo o filme é que, na verdade, Ephraim e Thomas são a mesma pessoa - o que é revelado pelo personagem de Pattinson ao se dar conta de que ambos têm o mesmo nome. Porém irei me aprofundar a respeito mais adiante.
Ponto de vista
Ainda que a história seja basicamente sobre a relação entre Ephraim e Thomas, quem nos conta a história é justamente o primeiro. E ao começar uma história, é comum que exista uma certa confiança no narrador -- afinal, é ele quem vai nos guiar durante todo o filme. Porém, nada garante que este estivesse são desde o começo. E quando Ephraim revela coisas sobre seu passado, faz muito sentido se perguntar se ele já não estava louco muito antes de chegar ao farol.
Tenho convicção que Eggers escolheu filmar em preto e branco por inúmeros motivos que vão desde à estética do filme até uma questão técnica cinematográfica. O filme se passa nos anos 1800, então faz sentido não ser apresentado em cores. Mais do que isso, não estamos mais acostumados à ver filmes P&B, então causam um certo desconforto, provavelmente intencional.
Porém, acredito que o filmar em duas cores facilita também para compreender o ponto de vista de todo o filme. Ao falarmos de preto e branco, estamos falando de dois opostos complementares. E é nisso que basearei toda a explicação - na teoria das polaridades proposta por Carl Jung.
Para a Psicologia Analítica, não faz sentido definirmos as coisas como se fossem excludentes; isto é, uma pessoa não é somente boa ou ruim. Ao falarmos da complexidade humana, temos que admitir que todos nós temos um pouco de bom e de ruim, ainda que não seja fácil aceitarmos nossas características negativas. Em um filme desses, onde há a intenção de ser apenas duas cores, o fato de ser preto e branco nos permite ver, literalmente, a existência de dois lados opostos.
Simbolismo em 'O Farol'
Pensando agora nesse ambiente desconfortável que o diretor tenta nos inserir: os dois personagens estão presos em uma ilha deserta, em que não existe qualquer rastro de civilização. Eles se encontram dentro de um farol, envoltos por uma imensidão de água. Como se já não fosse claustrofóbico o suficiente, a água é um elemento muito importante dentro do contexto. Na psicodinâmica, a água nada mais é do que a representação mais pura do inconsciente. Dentro do filme, percebemos os personagens cercados desse inconsciente, como se não pudessem sair disso.
Todavia, outros símbolos do inconsciente também estão presentes no filme. O mais claro deles diz respeito aos conceitos de luz e sombra. Já diria Jung "onde há luz, há sombra" - e aqui fica ainda mais nítido visto que foi filmado em preto e branco. Resumidamente, a luz diz respeito àquilo que está consciente, enquanto a sombra fala sobre tudo aquilo que está na camada do inconsciente, nossos aspectos sombrios - como defeitos que custamos a aceitar.
E qual a obsessão justamente de Ephraim? Ir até o farol e encontrar a luz - literalmente. Daí a necessidade quase doentia do personagem de alcançar a luz do farol. Imerso em conteúdos inconscientes - que, na maioria das vezes, são ruins e que não está disposto a enfrentar, o único jeito de sobreviver é ir atrás da luz.
Durante o filme, fica muito claro que Ephraim perde sua sanidade, de vez, a partir do momento em que estão esperando pela tempestade que está por vir. Afinal, ele começa a alucinar. Porém, a estratégia de Eggers é justificar isso como se fossem meras consequências de uma bebedeira intensa -- afinal, é mais fácil aceitar que uma pessoa está bêbada do que louca. O álcool entra como uma maneira de racionalizar essa loucura, ainda mais que, a esta altura, já temos uma certa empatia pelo personagem de Pattinson.
Significados
Pouco sabemos sobre Ephraim, e também sobre Thomas. O que temos clareza é que Ephraim está desesperado, cercado de conteúdos negativos o tempo todo. E ele está tão imerso nisso que é como se dissociasse - criando, então, o personagem de Dafoe. Basta notar que eles são personagens totalmente opostos. Enquanto Dafoe é mandão, grosso e rabugento, Pattinson é certinho, aceita ordens e não reclama. Quando essas polaridades vão se aproximando, é como se existisse uma conexão quase erótica entre os personagens - ainda que o filme não esteja disposto a se aprofundar sobre a sexualidade. E a partir do momento em que os dois vão se aproximando, viram um só - que é quando Pattinson admite que seu nome também é Thomas.
Pouco sabemos sobre Ephraim, exceto de que era um lenhador e aceitou o serviço no farol pois está fugindo de um antigo incidente onde costumava trabalhar. Ainda que revele que seu ex colega morreu acidentalmente, tudo dá a entender que na verdade foi um assassinato por parte de Ephraim. Ao fugir de seu problema, é como se não estivesse o assimilando à consciência; logo, a tendência é que isso se repita de alguma forma. E percebemos isso claramente quando Ephraim mata Thomas da mesma forma que provavelmente matou seu antigo companheiro de trabalho.
Mesmo alguns elementos mitológicos como a sereia, com a qual Ephraim está constantemente fantasiando, dizem respeito à aspectos inconscientes. Simbolicamente falando, a sereia seria uma espécie de parte negativa do feminino, aquela que encanta o homem e depois o devora. E é justamente essa sereia que representa o seu lado feminino, o que a Psicologia Analítica veio por chamar de anima. Ephraim entra em contato com o seu lado feminino - porém esse conteúdo também é agressivo, então sua tentativa de concretizar o desejo sexual acaba sempre de maneira drástica.
Eggers se utiliza de alguns elementos da Psicanálise tradicional para discutir a própria masculinidade do personagem, como o fato de o farol ser um símbolo fálico. Porém o que mais chamou minha atenção durante toda a história é essa angústia de Ephraim, que resulta numa busca insaciável pela luz, pela consciência, como se fosse uma espécie de salvação. Por vezes sua sanidade está tão perdida, que suas alucinações tomam forma e o corroem por dentro -- justamente o que a gaivota faz com ele no final.