Hereditário e Midsommar não são muito complicados. Ainda que ambos os filmes lidem com questões mitológicas, principalmente o segundo longa-metragem, dá para entender e não é preciso, de forma alguma, fazer um texto como este aqui. Só que em seu terceiro filme, o diretor Ari Aster fez algo bem diferente. Ao invés do horror tradicional, muito apoiado nas mitologias dos cenários em que as histórias passam, Beau tem Medo abraça o surreal e o inesperado.
Com isso, é difícil sair da questão com todas as respostas em ordem, com todas as dúvidas sanadas. O filme é um caldeirão de acontecimentos, muitos deles absolutamente surrealistas, e que faz com que a gente se sinta dentro de um sonho -- ou melhor, de um pesadelo. A seguir, tentei colocar um pouco das minhas impressões sobre a história. Não há respostas absolutas, apenas indicações de significados. A resposta definitiva não existe. E isso é a melhor coisa.
Atenção: a seguir, iremos dar detalhes significados da trama. Se não quer spoilers, fuja daqui!
Qual é a história de 'Beau tem Medo'?
Dirigido por Ari Aster, que já coleciona fãs alucinados e detratores raivosos, o longa-metragem é exatamente isso: um mergulho em um pesadelo. Como protagonista dessa jornada, Beau (Joaquin Phoenix, de Coringa). Ele é um homem que parece fracasso, vivendo já sua vida adulta em quarto e sala que, aparentemente, está na pior região da cidade. Parece não ter perspectiva.
As coisas ficam ainda pior, porém, quando ele recebe uma notícia devastadora e, de uma hora para a outra, precisa deixar os seus medos de lado (será?) para encontrar sua mãe, em uma região mais abastada e afastada. Nessa jornada, Beau mergulhará nesse mundo em que seus maiores pesadelos tomam forma para tentar chegar ao seu objetivo. É como se fosse a Jornada do Herói completamente banalizada, enfraquecida. É um homem paralisado que a percorre.
Aster evitou dar detalhes sobre suas inspirações em entrevistas — afinal, ele é daqueles realizadores que gostam que o espectador se sinta desafiado, mesmo com tudo desmoronando ao seu redor e nada fazendo sentido. No entanto, para o site IndieWire, Aster destacou como muito de seus medos estão ali, na tela. Por exemplo: já no início, o psiquiatra de Beau receita um novo remédio. O que era para ser bom, porém, se torna uma paranoia do personagem.
“Tenho medo de remédios. Provavelmente vem das vezes em que tive que tomar antibióticos e tive um ataque de pânico sobre se estou tendo efeitos colaterais ou não. Eu não faço muita coisa levianamente. As coisas podem dar errado. Tudo pode dar errado”, explica o cineasta, mostrando que muitos de seus medos estão nessa sua história. Seria, então, um mergulho em sua mente?
Qual o significado de 'Beau tem Medo'?
A partir de tudo que vi no filme, pensei em três teorias (com ajuda do Los Angeles Times, com ótima matéria), cada uma com seus pontos de apoio, suas fraquezas e com muitas respostas em aberto. A primeira delas é de que tudo ali não passa de um grande circo, tal qual um Show de Truman, criado pela mãe para controlar o filho não apenas mentalmente, mas em sua rotina. O filme, nada mais é, do que uma realidade bizarra que Mona (Patti LuPone) criou para o seu filho.
Essa ideia nasce já no final, quando Beau entra na casa da mãe e a câmera de Ari Aster dá um close em um quadro da matriarca que é formado por várias pequenas fotografias de funcionários da grande empresa de Mona. Ali, de relance, dá para ver Roger (Nathan Lane), que sequestrou Beau no segundo ato filme, e, o que mais me chocou, também está um dos homens que atormentou Beau enquanto ele tentava entrar no seu prédio com a rua tomada por loucos.
Oras, Roger ser um funcionário poderia ter várias explicações. Mas esse homem na rua, que simplesmente atormentava Beau por atormentar? É bizarro, é surreal. Parece, realmente, que Mona se esforçou para criar essa realidade -- afinal, ela tem dinheiro; pode fazer o que quiser.
No entanto, essa teoria é enfraquecida quando chegamos no terceiro ato e Beau encontra um pênis gigante no sótão de casa, dizendo que é seu pai. Com isso, chegamos na segunda teoria de que tudo se passa na cabeça de Beau. Oras, ele é um homem com problemas psicológicos e com mania de perseguição. Não tendo uma boa relação com a mãe, dá para imaginar que a figura materna é uma das suas principais assombrações, perseguindo e criando uma nova realidade.
Beau, assim, não está vivendo no mundo real, mas em sua realidade paralela em que é controlado pela mãe. Nessa possibilidade, há até a possibilidade de que tudo aquilo que ele viu na rua de casa não era verdade, eram apenas recriações de sua mente. Afinal, quando sonhamos, sempre há rostos conhecidos -- a mente não cria pessoas. E é isso que acontece aqui: Beau lembra de funcionários de sua mãe e os insere nessa realidade absurdo, dantesca.
No entanto, a teoria de que mais gosto é que o filme todo é um pesadelo para nós, espectadores: estamos presos na mente de Beau que, por sua vez, está preso na mente narcisista e cruel da mãe. E aí, com isso, passeamos por medos naturais de Beau (como aranhas, remédios e o mundo lá fora) com medos infligidos pela mãe em sua psique, como o pênis gigante com braços. É um pesadelo duplo, onde somos confrontados por medos e provações dos dois lados.
O que Ari Aster quis dizer com o final de 'Beau tem Medo'?
Misturando as teorias, e tudo que achei de bom e de ruim em cada uma delas, cheguei à conclusão de que o filme é um horror edipiano com toques de transtorno narcisista. Tudo, todos os símbolos, remetem ao sofrimento de Beau com uma mãe controladora, que queria mandar em tudo na vida do protagonista, e que acaba traumatizando o garoto para toda a sua vida. Afinal, como ela mesma diz, tudo aquilo não é um pesadelo qualquer, mas sim uma lembrança.
E, com isso, temos como resultado uma trama em que Beau enfrenta tudo aquilo que o traumatizou: desde a vida lá fora, passando por relacionamentos até chegar na relação com a mãe. Oras, o que seria o monstro-pai-pênis senão uma representação do Complexo de Édipo na mente do personagem, guardado no sótão -- a parte mais escondida da cabeça de Beau? Ele quis suprimir aquilo tudo, guardando ali até mesmo uma versão de si mesmo, mas não conseguiu. A mão, no final das contas, o obrigou a confrontar esses elementos todos no ato final.
A sexualidade de Beau foi reprimida, assim como seu contato social. Tudo está no inconsciente, na parte escura da mente. E no final, quando há o tal julgamento, é novamente a imaginação de Beau mostrando que a mãe, rica e poderosa, o esmagaria no tribunal, viraria seu barco, seus sonhos e sua imaginação. Lembra a cena da criança, bem no começo, brincando com um barco de brinquedo? A mãe o puxa ferozmente e o barquinho vira. É isso que acontece na vida de Beau.
O único momento lúdico do filme, e importantíssimo, é a animação que acontece após a peça de teatro. É o sonho dentro do pesadelo. Beau imagina o que teria acontecido com sua vida se tudo tivesse dado certo, se tivesse rompido as amarras da mãe, se tivesse tido suas próprias vontades. Obviamente ele cai em desgraça, já que nunca ele conseguirá se ver como alguém com sucesso. Mas é uma forma dele enxergar pelo buraco da fechadura que nunca existiu.