O novo filme da Netflix, Estou Pensando em Acabar com Tudo, dirigido por Charlie Kaufman e adaptado de um livro, possui uma história relativamente simples em um primeiro momento. Jake, (Jesse Plemons), leva sua nova namorada (Jessie Buckley) para apresentá-la a seus pais.
Essencialmente, o filme é uma roadtrip, ainda que muito diferente dos moldes que estamos acostumados. Durante a viagem, podemos acompanhar alguns pensamentos dela, entre eles, um constante que repete para si mesma: "estou pensando em acabar com tudo".
Com boa parte do tempo sendo passado no carro, o longa-metragem se permite a longos e complexos diálogos, estes repletos de referências, que vão desde musicais até poesias. Quem assiste ao filme pela primeira vez é praticamente induzido a pensar que a história se trata de uma moça, incerta de continuar num relacionamento, se forçando a conhecer os sogros.
No entanto, assim como outros filmes de Kaufman (como Anomalisa ou Brilho Eterno), o espectador é obrigado a pensar além do óbvio. Talvez, por conta disso, este seja o filme mais inacessível do diretor. É mais do que recomendado, inclusive, assisti-lo mais de uma vez.
Sonhos e alucinações
Ainda que Estou Pensando em Acabar com Tudo fale sobre tempo, envelhecimento e relacionamentos, sua complexidade vai muito além disso. Para explicá-lo, deixaremos de lado qualquer possível patologia e analisaremos o filme como uma espécie de sonho, de um ponto de vista psicológico. Quem nunca acordou após um sonho que não parecia fazer sentido, em que o tempo e os personagens não eram coerentes? Que as pessoas ocupavam papéis que normalmente não ocupariam na realidade? Enxerguemos o filme como tal.
Jake, no momento em que está sonhando acordado, não é o personagem de Jesse Plemons, mas sim o zelador, que vimos no minuto 3:18, olhando pelo vidro da janela de sua casa. Todo o filme é, na verdade, um sonho, talvez esperançoso, do homem interpretado por Guy Boyd.
E a prova disso nos é dada ao longo da história: ele aparece na mesma casa em que Jake chega com a namorada; quando ela pega roupas na máquina de lavar, são justamente seus uniformes de trabalho; os assuntos de interesse de Jake são mostrados através de livros em seu quarto de infância. De qualquer forma, o primeiro sinal é quando aos 6:30, ele entra em seu carro e podemos ver uma sacola de Tulsey Town, a sorveteria que aparece posteriormente, e também sua garrafa térmica, que vemos assim que Jake chega em casa e abre as gavetas.
Psicologia de 'Estou Pensando em Acabar com Tudo'
E para a Psicologia, o que são os sonhos? Uma fonte importantíssima de acesso ao inconsciente. Quando sonhamos, misturamos elementos "reais" de nossas vidas com conteúdos inconscientes que nem sempre entendemos por completo. É comum que nos sonhos, as coisas se confundam e o tempo cronológico seja praticamente nulo. Não é à toa que a história não é coerente em termos práticos: ele consegue escutar os pensamentos da namorada, seus pais pulam de uma idade de um momento para o outro e os nomes da garota mudem.
O grande indício de que o filme todo é uma espécie de mergulho no inconsciente de Jake, e não uma visão exata da realidade, é o fato de ele ser o único com o mesmo nome e com a mesma roupa durante todo o tempo. Sua namorada, ao longo da história, é chamada de Lucy (9:14), Louisa (33:18), Lucia (54:50), Ames (1:37:11) e até muda para Yvone (1:35:44), a atriz do filme que o zelador está assistindo. Pelo que tudo indica, ele não tem uma namorada e, mais do que isso, é um homem muito solitário. E o incrível do filme é que somos levados a crer que, de verdade, quem está alucinando é sua namorada, e não ele.
Significados e simbolismo
E por que Jake imagina sua namorada daquela maneira? Por diversos motivos, que vão desde influências cinematográficas em sua vida até questões mal resolvidas com os pais. Para a Psicologia Analítica, os relacionamentos estão diretamente ligados aos arquétipos da anima e animus. De maneira simplista, a anima seria o feminino inconsciente do homem. Ao nos relacionarmos afetivamente com alguém, buscamos parceiros com as características presentes no nosso animus ou anima. No caso de Jake, ele projeta a mulher ideal: inteligente, culta e que agrada seus pais -- todas as características que ele deseja ter. Tudo ali, refletido na tela.
Ao mesmo tempo, é uma pessoa que constantemente o diminui -- algo que ele faz consigo mesmo. A obsessão que seu pai tem por ela, não tirando os olhos da moça por um segundo, nada mais é do que um desejo de Jake em ter a aprovação do pai. Em 1:04:00, ela chega a dizer, indicando sobre o verdadeiro significado do filme:
"Nem sei mais quem eu sou nessa história toda, onde eu termino e onde o Jake começa. Sou uma bola de fliperama. Meu estado emocional está rebatendo para todo lado. Jake precisa me ver como alguém que o vê. Ele precisa ser visto, e precisa ser visto com aprovação. Como se fosse meu propósito nisto, na vida. Aprovar o Jake. Mantê-lo seguindo em frente. E ele precisa me ver como alguém cuja aprovação dele é validada porque sou aprovada por outros".
Jake mistura as coisas em seus sonhos: garotas que ele o vê na escola, trabalham na sorveteria; seu cachorro ora está vivo, ora suas cinzas estão dentro de uma urna; sua namorada trabalha em diferentes áreas (gerontologia, restaurante, física quântica); sua mãe confunde sua idade; na parede, é uma foto de sua namorada quando criança; ela ora fala que cresceu na fazenda ora diz que sempre viveu em apartamentos. E por que nenhum dos personagens estranha esses fatos e fazem algo a respeito? Porque isso tudo é de autoria de Jake. É a sua projeção inconsciente.
Após compreender que toda a história não se trata da realidade como a entendemos, mas sim como essa "alucinação" de Jake, o filme muda de tom. Agora, falamos de um homem de 50 e poucos anos, solitário, infeliz com sua vida, que sofre chacota em seu trabalho, e passa seus dias imaginando como seria essa vida ideal. O problema disso é que mesmo na idealização, ele sofre: Jake não é protagonista da sua própria história. É alguém que constantemente se diminui e procura uma aprovação no outro. Que tem dificuldade em enxergar seus próprios feitos. Que, no fim, termina em um quarto solitário, nome da música que canta ao encerrar o filme.
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