Em plena pandemia da Covid-19, o diretor e escritor Daniel Belmonte juntou uma trupe de atores para estudar e encenar, cada um nas suas respectivas casas, a peça Álbum de Família. Escrito por Nelson Rodrigues em 1945, no final do governo Getúlio Vargas, o texto foi censurado no ano seguinte de sua publicação, em 1946, no primeiro ano do presidente Eurico Gaspar Dutra, e liberada em 1965.
Adaptar uma peça teatral para o cinema, com raríssimas exceções, é quase um ato suicida, ainda mais se for um texto clássico, como uma peça de Nelson Rodrigues. Cinema é imagem e som, pelo menos assim o era no seu nascedouro, no Cinema Mudo. Mesmo com o advento das vozes dos atores nos filmes, no Cinema Falado, a imagem e o som continuaram desempenhando papel fundamental numa narrativa cinematográfica.
O diretor Daniel Belmonte, do longa B.O. (2019), assim como fizera o ator Murilo Benício em sua adaptação para o cinema de O Beijo no Asfalto (2018), outra peça de Nelson Rodrigues, subverte o texto original e faz dele uma obra transfigurada e metalinguística com muita dose de humor, inventividade e leveza.
Os atores escalados, Otávio Müller a frente no papel de Jonas – o patriarca pervertido de uma família de três filhos, uma filha, esposa (Senhorinha) e uma tia recalcada (Tia Rute), onde desejo, incesto, preconceito e loucura, determinam os destinos dos personagens – vão se juntar em lives e em filmagens caseiras, ora para questionar seus papeis, o texto “datado”, as contradições pessoais de Nelson Rodrigues, ora para encenar trechos da peça, usando o que tem a disposição em suas casas, como, por exemplo, retratos pintados na parede em tamanho natural para contracenar com um dos atores, que desenha, em sua casa.
Ou num dos momentos mais bonitos do filme, quando um trecho da peça Álbum em Família é realizada numa das casas da trupe, usando como cenário, miniaturas de bonecos, de uma casinha, os diálogos dos atores e a música instrumental ao fundo, mostrando a força dramatúrgica do texto como numa espécie de homenagem ao ato de subversão.
A subversão ao texto de Nelson Rodrigues é tanta e com tanto humor que em determinado momento entra em cena um ator nu deitado numa pedra no papel da “referência”, já que os atores reclamam para o diretor que estão sentido falta de indicações literárias e da própria rubrica do texto do dramaturgo para compor seus personagens e validar o que eles estão fazendo.
O diretor e escritor Daniel Belmonte e sua trupe de atores mostraram em Álbum em Família as possibilidades de contar uma história em meio a uma pandemia e a necessidade do isolamento social, usando os meios tecnológicos disponíveis e a criatividade inerente da arte de representar. Arte esta, que precisa se expressar em qualquer época, ainda mais nos dos momentos em que mais se atacou à cultura e sua importância.
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