O Festival de Brasília, em sua edição histórica de 50 anos, mostrou sua força política, contestadora e provocativa na noite de ontem, 16, com o início de sua mostra competitiva. Nela, foram exibidos os longas Música Para Quando as Luzes se Apagam, documentário de Ismael Caneppele, do Rio Grande do Sul, e a ficção Vazante, o primeiro filme solo da Daniela Thomas, de São Paulo.
A sala do belo Cine Brasília se transformou em um farol que veio jogar luzes sobre o obscurantismo causado pela falta de ética e do conservadorismo que tomou conta do País, depois que começou a projetar o primeiro longa da noite, o documentário inventivo com linguagem ficcional Música Para Quando as Luzes se Apagam, estreia na direção de Ismael Caneppelo, roteirista de Os Famosos, de Esmir Filho.
O filme registra a vida de uma jovem transgênero do interior do Rio Grande do Sul, Emelyn Fischer, com as descobertas dos possíveis caminhos de sua sexualidade e sua vida cotidiana, com sua turma de amigos. O longa é baseado no livro homônimo de Caneppelo, lançado em 2007, que utilizou como fonte um diário de uma jovem trans. Para diluir a fronteira entre documentário e ficção, o cineasta engenhosamente usa múltiplas maneiras de captar as imagens – que ora é filmada pelos próprios atores-personagens e noutra é o registro da câmera do diretor – e coloca uma atriz na mise en scène, a sempre sóbria e competente Julia Lemmertz. A atriz é um misto de mãe de Emelyn, numa história que se reconhece como ficção, ou uma “autora” que vai ajudá-la nessa transformação, em um registro que almeja o documental.
O filme é narrado de forma silenciosa, em sua maior parte e com belos planos-sequências, com Emelyn adentrando metaforicamente sua sexualidade nos caminhos que faz acompanhada por sua turma de rapazes ou com uma suposta namorada e namorado. Os personagens vão desbravando as ruas ou estradas de uma cidade do interior pouco iluminada, com as luzes das suas lanternas, celulares ou bambolês de neon, numa potente alusão às descobertas que virão. Um filme sensorial e fragmentado, que trata de um tema tão atual e urgente, a questão de gênero, sem cai na facilitação do discurso inflamado ou panfletário.
O primeiro filme de solo de Daniela Thomas, cenógrafa nas horas vagas, Vazante, que estreou no Festival de Berlim, é deslumbrante, só para começar com um adjetivo um pouco batido. Um belo exemplo do pleno domínio do exercício de direção, que não esquece os mínimos detalhes, como captar pequenos gestos, como, por exemplo, os olhares dos seus personagens perdidos ou amedrontados (os atores interpretam com os olhos) ou os objetos de uma sociedade patriarcal e escravocrata que ecoam no Brasil atual.
A história se passa na época colonial, numa Minas Gerais, em 1821, em que o Ciclo do Ouro está se esgotando. Antonio, personagem vivido de forma magistral pelo ator português Adriano Carvalho, está voltando de mais uma viagem de trabalho, trazendo mantimentos, gados e escravos africanos. Quando chega na sua fazenda, fica sabendo que sua mulher morreu num parto. Imerso na solidão e tendo como companhia uma mãe senil e uma fazenda improdutiva, Antonio vive de bebedeiras e transar com uma escrava de sua fazenda.
Numa das visitas que faz ao irmão, que mora em outra fazenda, ele se interessa por uma de suas duas filhas, Beatriz (Luana Nastas), uma menina de 12 anos. Propõe o casamento, mas o irmão diz que sua filha ainda não menstruou. Casam-se, e vão morar em suas terras improdutivas. Antonio continua com suas viagens de negócios, até que a menina possa menstruar e lhe dar um varão. Enquanto aguarda o marido, a menina, isolada com sua avó senil, passa a viver com os escravos, entre eles um filho de uma das escravas “de carne” do marido.
Filmado em preto e branco, com a excepcional fotografia do chileno Inti Briores, e marcado pelo rigor de sua concepção técnica e artística, Vazante nos reporta ao passado para registrar o que nos forjou como sociedade. Um filme rigoroso e poético, com sua tragédia anunciada, seja pela violência dentro da Casa Grande, com as mulheres-meninas que se casavam de forma arranjada, ou nas Senzalas, com o uso da força imposta aos escravos pelo trabalho forçados e pelos castigos sádicos, inclusive sexuais. Mesmo diante do aparato técnico excepcional de Vazante, Daniela Thomas, não esquece de dirigir seus atores, de forma minimalista, com poucos gestos, tendo o olhar como registro dos sentimentos represados e amedrontados.
Com um final catártico, Vazante é um espelho do filme de Marcelo Gomes, Joaquim, contudo, indo mais longe, pela magistral maneira de conceber um Brasil contemporâneo através de uma família patriarcal colonial com sua violência pulsante e dominante sobre as mulheres e os escravos, onde a força rege as relações sociais e a sua hierarquização. Como disse um expectador no final projeção, Vazante “matou a pau”.
* Amilton Pinheiro é enviado especial do Esquina da Cultura para o Festival de Brasília
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