É o segundo ano que o É Tudo Verdade, festival internacional de documentários, tem como sala-sede o Instituto Moreira Salles (IMS), na Paulista. E mais uma vez, as sessões da mostra competitiva de longas e médias brasileiros foram problemáticas por conta do pequeno espaço da sala do IMS, que tem capacidade de pouco mais de 100 pessoas. A primeira sessão da mostra competitiva brasileira se esgotava rápido, com muita gente tendo que ficar para ver a segunda exibição do filme, que o festival reservava para logo em seguida à primeira sessão, que também era disputadíssima.
Além da IMS, o É Tudo Verdade têm as salas do Itaú Cultural, também na Paulista, e a do Sesc 24 de Maio, no Centro de São Paulo, ambas pequenas e distantes do IMS, o que termina prejudicando o deslocamento do público que acompanha o evento. Por ter que reservar duas sessões da mostra competitiva brasileira de longas e médias metragens, por conta do pequeno espaço da sala do IMS, o festival termina prejudicando o acesso do público aos outros filmes das mostras – Internacional, Latino-Americana, Programas Especiais, Estado das Coisas e dos homenageados: os cineastas Claude Lanzmann e Nelson Pereira dos Santos.
Na coletiva de imprensa, que aconteceu antes do início do evento, entre 4 a 14 de abril, o fundador e diretor do festival, Amir Labaki, foi questionado sobre o problema da capacidade da sala do IMS, já que, em anos anteriores, o É Tudo Verdade tinha como salas-sedes a do Cinearte, no Conjunto Nacional, com quase 400 lugares, e a do Cine Sesc, com mais ou menos 300. Labaki desconversou, e revelou que as exibições na sala do Instituto Moreira Salles foram muito boas em 2018 -- o que não é verdade, como mais uma vez se comprovou este ano e como já relatamos durante a cobertura passada.
Não se pode negar que o festival teve que se readequar em decorrência da perda de parte do orçamento, que este ano girou em torno de 1,9 milhão de reais, mas é inadmissível que o maior festival de documentários da América Latina, que vem melhorando sua programação ano a ano, não tenha uma sala-sede com mais espaço. Vamos esperar que em 2020, Labaki consiga voltar novamente a ter uma sala-sede como teve em anos anteriores, o festival e o público que o frequentam merecem.
Premiação do É Tudo Verdade
Excetuando o problema de uma sala-sede adequada para o É Tudo Verdade, a 24ª edição do Festival trouxe uma programação de encher os olhos e as mentes do público. Havia filmes com proposta estética e de linguagem balanceadas e temáticas diversas e urgentes, com destaque para os sete longas e médias da mostra competitiva brasileira:
Cine Marroco, de Ricardo Calil, o vencedor pelo júri oficial;
Dorival Caymmi – Um Homem de Afeto;
Estou Me Aguardando Para Quando o Carnaval Chegar, do premiadíssimo Marcelo Gomes,; que ganhou menção honrosa;
Niède, de Tiago Tambelli;
Rumo, de Flávio Frederico e Mariana Pamplona;
Soldado Estrangeiro, de José Joffily e Pedro Rossi;
e Soldados da Borracha, de Wolney Oliveira.
Dos sete filmes, cinco poderiam facilmente ter ganho o prêmio do júri, com exceção de Rumo e Dorival – Um Homem de Afeto. Não são ruins, mas um pouco inferiores na qualidade temática, estética e de linguagem. Dos cinco que poderiam vencer, três sobressaíram dos demais. Os surpreendentes e bem realizados Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, Niède e Soldados da Borracha, com uma pequena vantagem na realização do filme de Marcelo Gomes.
Antes de falar desses filmes, alguns considerações críticas do vencedor do Júri Oficial, Cine Marroco, de Ricardo Calil, que trata da ocupação de um dos movimentos dos moradores sem teto de São Paulo num dos maiores e mais tradicionais cinemas de rua de São Paulo, o antigo Cine Marrocos ou Marrocos Pullman.
O local foi inaugurado em 1952, em um belo prédio de doze andares no Centro do São Paulo, próximo ao Theatro Municipal, e desativado 20 anos depois, em 1972. Mas já no seu início, foi palco do Festival Internacional de Cinema do Brasil, em 1954. Nos últimos anos, totalmente desativado, o prédio foi alvo da ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e de algumas famílias que vivem sem abrigo nas proximidades, inclusive imigrantes e refugiados em outubro de 2013.
Cine Marrocos emula sem disfarces dois filmes recentes: Os potentes e engenhosos César Deve Morrer, dos irmãos cineastas italianos, de Vittorio e Paolo Taviani (2013) e o brasileiro Era o Hotel Cambridge, Eliane Caffé (2017). Filmes que tratam das temáticas e dos dispositivos narrativos trabalhados em Cine Marrocos. No primeiro, os irmãos Taviani passaram seis meses na prisão de segurança máxima, Rebibbia, em Roma, trabalhando, junto com um diretor de teatro, Fabio Cavalli, uma peça de William Shakespeare, Júlio César, com alguns prisioneiros.
O filme, acertadamente, se concentra nas potencialidades cênicas daqueles não atores, e do poder da arte na transfiguração de vidas em estado limite, ou seja, vidas aprisionadas, reinventadas pela arte. Mas ao mesmo tempo que aborda os ensaios e a encenação da peça, o longa não deixa de explorar na medida certa, as histórias de vida daqueles prisioneiros, pontuando seus dramas e suas perspectivas.
Enquanto isso, o filme de Eliane Caffé trata de forma engenhosa a ocupação de um prédio no Centro de São Paulo, o antigo Hotel Cambridge, por moradores de um movimento dos sem teto e imigrantes e refugiados, que contracenam com atores, com José Dumont, mimetizando histórias reais com as potencialidades da ficção. O filme na se refuta em flagrar, o clímax do longa, a reintegração do Batalhão de Choque da Polícia Militar, como se a câmera do filme fosse mais um daqueles moradores daquele local.
Cine Marrocos procura, com desequilibro, ser um misto de proposta narrativa, temática e de linguagem desses dois filmes citados, não conseguindo atingir a potencialidade nem de um nem do outro, convalescendo de intenções não atingidas e de uma certa pretensão estilística, ao encenar trechos de alguns filmes com os moradores do prédio invadido. Mesmo que consiga algumas convincentes interpretações dos moradores-personagens de trechos de filme como Crepúsculo dos Deuses, Billy Wilder, o diretor negligencia as histórias daquelas pessoas, deixando no espectador uma frustração de não ficar conhecendo mais de vidas tão ricas e humanas.
Outro problema grave do filme é não localizar o espectador no tempo em que acontece àquelas histórias, deixando a sensação de que o prédio estaria ainda ocupado pelos moradores sem teto. E quanto acontece a reintegração do prédio pela polícia de São Paulo, o diretor filma de forma distanciada e sem clímax, como acontece em Era o Hotel Cambridge, como não tivesse vivido tanto tempo com aqueles moradores.
Correndo por fora
Mas por outro lado, dois filmes atingiram suas propostas narrativas, temáticas e de linguagem dentro da mostra competitiva de longas e médias metragens: Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes, e Niède, de Tiago Tambelli. Mesmo que não tão ousados esteticamente, trazem histórias surpreendentes, narradas de forma exemplar e convincentes.
Correndo por fora, Soldado da Borracha, de Wolney Oliveira, com rico material de pesquisa, aborda uma história de injustiças e desumanidade, acontecida durante a Segunda Guerra Mundial, quando por volta de 60 mil nordestinos foram atraídos a região amazônica para trabalharem na extração de látex para abastecer à indústria americana de armamentos.
As mazelas do Brasil de ontem, ditando as transformações econômicas, políticas e sociais no País de hoje, com sua brutal concentração de renda entre pessoas e regiões. É nesse caldeirão surreal de um Brasil em que a história ainda não passou, que o documentário Estou Me Guardando Para Quando Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes, revela a precarização do mercado de trabalho, ao contar a história de moradores de uma outrora pacata cidade do interior nordestino, Toritama, no agreste de Pernambuco, tragada pela falta de investimento, descaso público, desigualdade e falta de oportunidade.
Partindo de reminiscências da infância, quando viajava com seu pai, que trabalhava como fiscal, para a região onde fica Toritama, o diretor volta ao local para deflagrar as transformações econômicas ocorridas nos últimos anos na cidade, hoje transformada em um dos maiores produtores de jeans do País, atraindo trabalhadores para a região e permitindo que moradores locais não precisem mais mudar para outras partes do Brasil em busca de oportunidade.
Abordando alguns desses trabalhadores, o documentário vai revelando histórias de vida e de esperanças de enriquecimento, e as ilusões impostas pela descomunal precarização de trabalho e de remuneração daquelas pessoas. Durante o ano inteiro, elas impõem a si mesmas enormes cargas de trabalho na vã esperança de enriquecimento rápido e certo. Mas o que o documentário vai mostrando é a coisificação daquelas pessoas, que mal conseguem contemplar o “luar do sertão” e uma vida, agora não mais pacata, de uma cidade do interior.
É mais um filme que mostra o horror social de grande parte da população de trabalhadores brasileiros, iletrados e miseráveis. Mas mesmo diante de mais uma história de injustiças e desumanização, o documentário não perde a poesia e a alegria daqueles personagens, que passam o ano inteiro trabalhando cada vez mais, para poderem gastar suas “misérias” de vida e de remuneração durante o Carnaval em um litoral de Pernambuco, com seus dias dionisíacos de vida plena e satisfatória.
Recuperando uma história inacreditável e transformadora, o documentário Niède, de Tiago Tambelli, nos conduz a conhecer a vida e a obra de uma mulher extraordinária, a arqueóloga brasileira Niède Guidon, que revelou ao mundo as pinturas rupestres no sul de Piauí, no nordeste. Com farto material de imagens audiovisual, feitas pela equipe da pesquisadora Niède, durante mais de 40 anos, quando ela e outras pessoas descobriram o local com essas escritas antigas, e passaram a visitá-lo e pesquisá-lo, o documentário consegue compor a jornada dessa mulher, que corajosamente e de forma visionária empreendeu uma viagem ao desconhecido, sem temer nada em volta, inclusive capangas e a população local, e uma ditadura assassina e nefasta.
Vencedores
Júri Oficial
Melhor Documentário (longa e média metragem): Cine Marrocos, de Ricardo Calil.
Menção Honrosa: Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes.
Melhor Curta: Sem Título #5: A Rotina Terá Seu Enquanto, de Carlos Adriano.
Prêmio Abraccine para longa e média metragem: Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes.
Prêmio Abraccine para curtas: Planeta Fábrica, de Julia Zakia.
Prêmio Canal Brasil para curtas: A Primeira Foto, de Tiago Pedro.
Júri Internacional
Melhor Longa e média metragem internacional: O Caso Hammarskjöld, de Mads Brügger.
Prêmio Especial do Júri: Meu Amigo Fela, de Joel Zito Araújo.
Menção Honrosa: Hungria 2018: Bastidores da Democracia, de Eszter Haddú.
Melhor Curta: Nove Cinco, de Tompas Arcos.
Menção Honrosa para Curtas: Lily, Adrienne Gruben.
Melhor Longa e média metragem latino-americano: Piazzola: Os Anos do Tubarão, de Daniel Rosenfeld.
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