É ensinado na escola, como numa cartilha, que os índios foram dizimados na América com a chegada dos colonizadores. Doenças europeias, a religião, a escravidão. Tudo serviu para um verdadeiro etnocídio -- que é quando um povo tem sua essência assassinada. Pouco é dito, no entanto, sobre o que acontece hoje em tribos espalhadas por todo País, que ainda se veem reféns de uma colonização branca e que acabam se adaptando à hábitos e tradições externas.
É sobre esse difícil e urgente tema que trata o documentário Ex-Pajé, do excelente diretor Luis Bolognesi (Uma História de Amor e Fúria). Sua câmera, discreta e sem influências na história, observa a rotina de uma tribo isolada no interior da Amazônia que se transforma continuamente. O antigo Pajé se vê sem função após um pastor afirmar que as funções do índio eram demoníacas. As crianças usam celular sem parar. E a luta contra as madeireiras é pelo Facebook.
Esses pontos poderiam render um grande manifesto nas mãos de um cineasta raivoso que defende, com unhas e dentes, que os índios precisam viver isolados para preservar a cultura. Ou, ainda, ser um retrato quadrado sobre os efeitos diretos e nocivos da cultura branca na sociedade indígena. Mas não nas mãos de Bolognesi. Sua direção é observativa, deixando que os próprios índios contem suas histórias e mostrem, em atos e falas, o que acham de suas vidas.
Isso não impede, porém, que algumas fortes imagens sejam construídas ao longa da projeção -- como a do ex-Pajé Perpera Saruí sentado à porta da igreja, de trajes sociais, vendo uma árvore exalar vida ou a menina que joga um game de caça no celular enquanto seus parentes justificam a morte de uma cobra. São diferenças que, aos poucos e sem grandes atribulações, vão sendo colocadas na tela para formar esse cenário atual de um etnocídio.
Perpera Saruí, aliás, é um dos personagens mais interessantes que poderiam retratar esse movimento de transformação da cultura do índio. Antes necessário para sua tribo, hoje ele se vê sem funções e cumprindo algumas tarefas absurdamente triviais, como fazer compras no mercado ou indo à lotérica pagar algumas contas -- rendendo cenas fortes e históricas. Ou seja: é um personagem atropelado pelo avanço da cultura branca e que fala por si só.
O documentário só não é perfeito por conta do ritmo. Afinal, ao invés de deixar a história rolar de maneira totalmente natural e sem decisões pensadas, Bolognesi acaba se rendendo a alguns artifícios que deixam a história com uma pitada artificial -- como um momento que Perpera Saruí vai fechar a igreja e cada ângulo desse ato é retratado de maneira bem enquadrada e calculada. Acaba tirando o ritmo e por conta de cenas que não acrescentam tanto.
Mas Ex-Pajé já é um dos mais interessantes representantes do festival É Tudo Verdade, de 2018, que se mostra extremamente político, efervescente e urgente. A temática dos índios, felizmente, está bem retratada com uma produção elegante, discreta e que deixa o público compreender, por si só e por algumas imagens, o que está acontecendo no interior do Amazonas. Filmaço de Bolognesi e que não vai surpreender se ganhar o prêmio principal. Seria merecido.
* Filme assistido durante a cobertura para o festival É Tudo Verdade 2018.
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