Rasga Coração, novo filme do cineasta Jorge Furtado (O Mercado de Notícias), parece ter sido escrito ontem. A trama acompanha um pai (Marco Ricca) que, em sua juventude, lutou pela liberdade civil democrática durante a Ditadura Militar. Agora, porém, não vê com bons olhos a militância do filho (Chay Suede), que começa a lutar pela igualdade de gênero no colégio -- a namorada, afinal, foi barrada na porta da escola por se "vestir como menino". A partir daí, ideologias colidem, assim como a forma de cada um deles fazer política. Será que a luta mudou de um pra outro? Ou foi só contexto e a militância?
Surpreendentemente, porém, Rasga Coração é uma peça escrita há mais de quarenta anos por Oduvaldo Viana Filho, um dos gênios brasileiros da dramaturgia. E Furtado disse ter mudado pouquíssima coisa do texto. "Das 122 cenas da história, acrescentei só uma", conta o diretor. "É uma história extremamente atual. Adaptamos apenas a geração, que na versão original falava da década de 1950 e 1970. Para fazer mais sentido para o público de hoje e para combinar com o tamanho do celular das pessoas, resolvemos falar das décadas de 70 e anos 2010. Atualizamos um texto já muito atual."
Além da tal cena, que mostra um encontro entre as personagens de Drica Moraes e Luiza Arraes, o novo longa-metragem também traz algumas pequenas diferenças que agradam. A mãe de Luca e esposa de Manguari Pistolão, vivida por Drica, deixou de ser apenas apática e infeliz com a vida para se tornar uma mulher cansada, mas ainda com algum ânimo para participar da rotina da casa. "Na peça, a personagem da Nena é aquela que arrasta o chinelo, não tem força para falar nada", contextualiza a atriz Drica Moraes. "Na adaptação, ela tem força, tem controle sobre a família, mas está perdendo tudo. Deixa de fazer sexo, deixa de decidir algumas coisas na casa. É um texto genial."
O personagem do filho Luca, vivido por Chay Suede, passou por alterações de visual. No texto original, sua grande rebeldia era ter cabelo longo. "Hoje, juiz do Supremo usa peruca e advogado fica andando por aí com trança. É uma transgressão ultrapassada", diz o espirituoso diretor Jorge Furtado durante a coletiva de imprensa que apresentou o filme. Suede complementou: "por isso ele passou a usar saias, a falar de identidade de gênero, a pintar a unha. Precisava de algo mais agressivo pra mostrar esse lado dele."
Além disso, um personagem masculino foi trocado por uma mulher negra -- uma das mais politizadas de todo o longa-metragem. "Tem basicamente duas mulheres no filme, interpretadas pela Drica e pela Luiza. Nenhuma das duas é totalmente politizada. A personagem até começa a ser uma vilã", comenta Furtado. "Precisava colocar alguma mulher com uma boa posição política." Ao ser questionado sobre o destino complexo que dá aos personagens negros, Furtado é taxativo. "Negro, nessa nossa sociedade escravista, ainda se dá mal. Nove de cada dez pessoas mortas pela polícia são negras."
Importância. Durante a coletiva de imprensa, elenco e diretor foram questionados, numa inteligente pergunta, sobre o impacto que a história poderia ter nas pessoas que praticam política. Qual é o tipo certo de resistência? Furtado logo relembrou um artigo que escreveu para a revista Carta Capital no qual fala sobre as melhores condições para professores, melhorando o ensino público. "Se o povo ler mais, tiver uma melhor educação, tudo pode melhorar nesse País. Acredito nisso", finalizou o diretor Furtado.
Já Marco Ricca foi além. "Outro dia estava andando na Paulista e vi a diversidade de pessoas que existem no Brasil. É maravilhoso. O que está acontecendo agora no País e no governo não pode nos derrubar", comentou. "Logo depois, fui assistir uma peça inspirada em Grande Sertão: Veredas e vi que todo mundo precisa de Guimarães Rosa na vida. Se todo mundo lesse Guimarães, aí sim que tava tudo resolvido. Grande Sertão e sagu para o povo!", disse o ator, se referindo ao churrasco com sagu que comia durante as gravações de Rasga Coração, em Porto Alegre. "O Brasil tem solução".
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