
Logo depois de descobrir o samba por meio de Adoniran Barbosa e Martinho da Vila, senti que precisa ir além. Conhecer mais da nata do samba, seja ele carioca ou paulista -- afinal, nada de bairrismos do meu lado. Parti, então, para ouvir mais Cartola, Nelson Sargento, Riachão, Candeia, Paulo Vanzolini, Noel Rosa e Dona Ivone Lara. E foi a voz e o lirismo desta última, falecida na noite de segunda-feira, 16, que me arrebatou de vez para o samba, me levando numa torrente de poesia que nunca tinha visto.
Seu samba é diferente. Alguns dizem que é "mais feminino". Não acho. Samba é samba, não importa quem o faça. O que acredito é que Dona Ivone Lara conseguiu captar um sentimento muito forte e traduzir em samba com requinte na letra e melodia -- muitas vezes com o parceiro Délcio Carvalho. Mais do que memórias de sua origem e, em alguns casos, crítica social, Dona Ivone fala sobre amor, sobre compaixão, sobre esperança nas outras pessoas.
"Um sorriso negro, um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego, fica sem sossego
Negro é a raiz da liberdade..
Negro é uma cor de respeito
Negro é inspiração
Negro é silêncio, é luto
Negro é a solidão
Negro que já foi escravo
Negro é a voz da verdade
Negro é destino é amor
Negro também é saudade"
Dona Ivone também serviu de inspiração. Afinal, mulher no samba, até meados da década passada, era para fazer a feijoada e servir os bambas que se reunir em suas casas -- não é à toa que o primeiro samba, Pelo Telefone, foi composto na casa da Tia Ciata enquanto ela preparava o rango para os sambistas. Dona Ivone, junto com Beth Carvalho, quebrou esse paradigma. Samba é para todos, feito por todos. Era uma verdadeira feminista, mesmo sem saber o que era isso.
Afinal, ela seguiu a cartilha do que "era esperado": casou, teve filhos, cuidou da família. Não é à toa que ela só se dedicou ao samba tardiamente, apenas depois de se aposentar e se formar em Enfermagem. "Não foi uma mulher que teve uma vida contestatória a esses cânones sociais. Mas foi feminista no sentido de que sempre acreditou profundamente na possibilidade de ser alguém independe do marido e das convenções sociais", disse a biógrafa Rachel Teixeira Valença à BBC.
A sambista também deixou sua marca como a primeira mulher a compôr um samba-enredo, colocando a ótima e sonora Os Cinco Bailes da História do Rio na avenida da Sapucaí pela Império Serrano. Desse jeito, ela mudou a história do samba e mostrou que não estava fazendo composições no gênero apenas de brincadeira. Ela era sambista pra valer.
Dona Ivone Lara, então, foi mais do que uma sambista. Assim como Cartola, mas de uma forma mais afetuosa, levou o amor às pessoas pelo samba. Assim como Martinho da Vila, defendeu sua escola de samba do coração durante toda a vida. Assim como Noel Rosa e Adoniran, cantou sua cidade. Assim como Beth Carvalho, trilhou o caminho da mulher no samba. E, apenas como Dona Ivone fez, levou esperança em seus sambas através dos mais belos "laraiás" da música brasileira.
Ela vai fazer falta à música, sem dúvida. Mas, como ela disse em Roda de Samba para Salvador, "não chora meu bem, que dias melhores já vem".
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