Adoniran Barbosa não era uma personalidade fácil de ser definida. "Calado, ranzinza e mal humorado" para alguns, "receptivo e brincalhão" para outros. Na música, a mesma coisa: o ritmo alegre e descontraído embalava letras tristes e profundas, que mergulhavam no poço de desigualdade e transformações que as pessoas podiam ver ocorrendo na cidade de São Paulo.
E são todas essas personalidades e contradições que estão no documentário Adoniran: Meu Nome é João Rubinato, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 23. Dirigido por Pedro Serrano, nome por trás do curta-metragem Dá Licença de Contar, o filme se vale de bons depoimentos para se aprofundar nessa figura do "palhaço triste" e ir além. Muito além.
Abaixo, confira um bate-papo do Esquina com Pedro, que falou sobre música, o documentário, o longa-metragem que está penando para sair e sobre, é claro, sobre João Rubinato:
Esquina da Cultura: Quando você decidiu fazer o documentário? Foi depois do curta?
Pedro Serrano: Depois do Dá Licença de Contar circular bastante e ganhar alguns prêmios, recebi o convite de fazer um longa-metragem sobre o Adoniran. Nesse período de planejamento do longa, comecei a fazer pesquisas e a me aprofundar ainda mais no personagem. Voltei a conversar com fontes, com pessoas ligadas à história do Adoniran. Até que um crítico sugeriu que eu aproveitasse essas conversas e fizesse um documentário. Num primeiro momento não acreditei muito, pois já estava difícil captar recursos para o filme de ficção. Mas, depois, comecei a levar a câmera para as entrevistas, comecei a gostar da ideia e o documentário nasceu.
Esquina: A ideia do longa ainda existe? Há espaço para mais um filme sobre o Adoniran?
Pedro: É um projeto que existe ainda hoje, mas que está numa fase complicada de captação [de recursos]. Estamos num momento estranho para isso. E acho que temos espaço. É uma abordagem diferente do curta-metragem, por exemplo, que é uma leitura muito pessoal sobre a obra dele. Era meu olhar, com uma visão poética. Vi que tem espaço para mais sobre o Adoniran. Afinal, estaremos resgatando a figura dele, que começou a ser esquecido pelas novas gerações.
Esquina: E, querendo ou não, o Adoniran falava sobre coisas que ainda são muito relevantes.
Pedro: O Adoniran tinha músicas muito visuais. O processo que ele conta da especulação imobiliária, de colocar prédios no chão, é uma coisa que ainda vivemos e é muito relevante, que precisa ser discutida. Também há muitas questões urbanísticas e de desigualdade social.
Esquina: Como foi para selecionar os entrevistados? E como achar arquivos sobre o Adoniran?
Pedro: Alguns entrevistados foram bem receptíveis, outros não -- principalmente por conta da idade. Eu perdi o Fernando Faro [do programa Ensaio] por dois ou três meses. Ele tava doente, ia esperar um pouco e acabou falecendo. O próprio Antônio Cândido já estava com 100 anos e disse que não falava mais. Outros, enquanto isso, não queriam participar pois, durante o filme, eu fiz uma descoberta sobre novos trabalhos do Adoniran. Era algo que cheirava mal, estava estranho. E aí cometi a ingenuidade de citar isso no filme, na minha vaidade de realizador. E aí algumas pessoas não queriam falar comigo por conta desse fator. Só depois que percebi que não precisava disso. A obra do Adoniran Barbosa tinha uma grandeza que bastava por si só. Eu deixei de lado esse assunto e, logo depois, as portas se abriram. Era algo bem duvidoso, de fato.
Agora, sobre o arquivo: foi mais uma luta financeira. A Cinemateca estava um completo caos. Não tínhamos acesso à quase nada. Precisava achar o material em outro lugar e, depois, pedir os direitos para a Cinemateca. Era uma bagunça, era tenebroso. Tudo muito sucateado. Aí foi uma pesquisa vasta em acervos pessoais, em TVs, acervo pessoal do próprio Adoniran.
Esquina: Voltando pra questão dele ser esquecido. Qual a importância de preservar a memória?
Pedro: Pra quem é da área da cultura, é uma missão e um dever constante. Com as possibilidades de difusão culturais e de audiovisual, isso é importante de fazer. Nem tudo é preciso ter pretensão artística e cultural. Precisamos ter memória, precisamos nos entender. O jovem de hoje, que é paulista, vai ouvir Adoniran e se entender um pouco mais. Dizem muito que o Brasil é um país sem memória. Mas esse é um clichê muito fácil de se apegar. Hoje em dia, há mais memória. Mais conteúdo, mais coisas sendo feitas. Acho que o desafio é tocar as pessoas. A própria sociedade, às vezes, não se manifesta à favor de consumir esse tipo de coisa. É preciso de uma formação de público, na sociedade como um todo, em cinema, literatura, enfim.
Esquina: O Adoniran era uma figura muito complexa. Profissionalmente falando, era músico, radialista, humorista, ator. Emocionalmente, um turbilhão. Como retratar tudo isso no filme?
Pedro: Foi um desafio. Mas, hoje em dia, eu sinto que conheci ele. No filme, tentei trazer o que era a personalidade dele. As conversas, as contradições. Algumas histórias eu queria descobrir a verdade, mas depois deixei pra lá. Afinal, se ele não contou a verdade, por qual motivo eu cotaria? Emocionalmente, trouxe a questão do homem triste, mas que era brincalhão, um poeta profundo. O filme traz isso. Mistura coisas divertidas dele, depois dá uma "porradinha" com algo mais triste. É o chamado "palhaço triste". Levamos essa contradição pra tela e entramos no jogo dele. Mostramos todas as facetas, todas as contradições, a complexidade na personalidade.
Esquina: E tem uma complexidade nas músicas. Você usou as músicas por esse lado no filme?
Pedro: As músicas criam climas na história. Mas acredito que o fio condutor do documentário é o progresso da cidade, junto com a personalidade dele. E as músicas vão encaixando nisso, ilustrando determinadas características. Não fico preso à cronologia delas, às histórias. São músicas diferentes. E muito das que são alegres e divertidas, na verdade, são profundas, tristes e falam sobre desigualdades sociais. Isso acontece muito pela coisa do rádio que o Adoniran tinha. Ele fazia crítica pelo humor. E pelo jeito gaiato do Demônios da Garoa, que fez sucesso com as composições do Adoniran. Acredito que isso afetou a percepção do público com a obra.
Esquina: Você disse que "conheceu o Adoniran" no processo. Então, quem era o Adoniran?
Pedro: O Adoniran era um cara calado, ranzinza e mal humorado. Mas nada disso no mau sentido. Ele era aquele cara que, dessa forma, aproximava as pessoas. Tinha respostas curtas e fazia você rir -- não o achava um cara chato. Ele era uma figura folclórica. Havia proximidade com ele. Ao mesmo tempo, o Adoniran era muito contraditório. Afinal, esse traço mal humorado era algo íntimo dele. Era o João Rubinato. Para as pessoas no geral, o Adoniran era receptivo, brincalhão, gozados, aberto a falar, apegado aos costumes. O jeito do Adoniran se vestir era um manifesto para a São Paulo de outros tempos. Tinha um lado profundo, atento às mazelas sociais e ao sofrimento do povo e seu próprio sofrimento. Isso o transformou na figura do palhaço triste. Era uma figura incrível para tomar um uísque, sentar e conversar por um tempo.
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