Clairvius Narcisse foi um zumbi da vida real. Saudável e forte, o haitiano caiu em uma emboscada armada por seu irmão, que o envenenou com secreção de baiacu. Enterrado vivo, ele acabou sendo "resgatado" horas depois, num estado de semi-consciência, por capatazes que o escravizaram numa plantação. Voltou à "vida" apenas anos depois, quando se libertou.
Agora, em Zombi Child, o cineasta Bertrand Bonello (Nocturama) se vale da história real de Clairvius -- e da riquíssima cultura haitiana -- para repolitizar a figura do zumbi, mostrar vários lados e consequências da colonização francesa e criticar de novo o vazio dentro de mentes juvenis. Entretanto, o foco é claro: destacar as diferenças de pensamentos, culturas, emoções.
Sem uma narrativa consciente, e que passeia entre tempos e até gêneros cinematográficos, Bonello tenta traçar paralelos entre diferentes situações: numa delas, a mais interessante, acompanhamos a jornada silenciosa de Narcisse tentando voltar à vida; em outro, vemos sua neta (Wislanda Louimat), nos dias de hoje, se enturmando com uma francesa (Louise Labeque).
Há conflitos de cultura e pensamento que se evidenciam em pequenos gestos, atos, sentimentos. Mélissa, a neta, é vista como um ser exótico pelas colegas. A amiga francesa a vê como uma possibilidade mística de alcançar desejos além de sua possibilidade, por meio do vudu. Por outro lado, a garota haitiana parece ter vergonha, por vezes, de sua personalidade.
Ela se conecta com a sua religião escondida no banheiro. Quando questionada pelas amigas sobre a profissão da tia, que é uma espécie de curandeira vudu, ela esconde e não explica. Além disso, faz de tudo para se enturmar -- como seria natural numa situação como essa. Canta um rap, bebe, fala sobre garotos que não a interessam. Molda uma personalidade que não existe.
Interessante notar, porém, a forma como a colega francesa Fanny enxerga o vudu. Especial e mística para o povo haitiano, a religião é tratada de maneira fútil pela colega, visando-a apenas como um meio de alcançar uma paixão que a rejeitou. Tudo isso, é claro, com a elegância e a estranheza de Bonello, que possui um estilo característico próprio na forma de contar histórias.
Uma pena, porém, que a conexão metafórica entre a história do zumbi com as meninas nos dias de hoje seja tão fraca. Ela existe -- o zumbi se liberta, as meninas viram zumbis de algo maior e invisível, talvez --, mas nunca se aprofunda. Até mesmo uma certa tensão racial entre Mélissa e Fanny é tensionada durante toda a rodagem, mas nunca chega na explosão de fato esperada.
O pior, e que acaba derrubando a nota de Zombie Child, é a exotificação do haitiano negro. Bonello critica essa visão durante todo o filme e, no final, cai nessa armadilha. Ou será apenas uma provocação? Não importa. O fato é que fica nebulosa a forma de lidar com a figura negra do vudu. Ainda é um grande filme! Complexo, desafiador. Mas não devia derrapar assim no final...
Comments