Quem já assistiu ao curta-metragem Dá Licença de Contar, pode imaginar o que é apresentado em Saudosa Maloca, longa-metragem selecionado para a Mostra 2023 e já garantido em circuito comercial em breve. Assim como no curta de 2015, o diretor Pedro Serrana foge das convenções que surgem em cinebiografias. Nada de nascimento, vida e morte de Adoniran Barbosa -- isso fica para o bom documentário do cineasta. Aqui, o foco é criar ficção com as suas músicas.
Afinal, João Rubinato -- nome real de Adoniran -- era mais do que um cantor e compositor. Ele era um contista, um cronista que fala sobre a cidade de São Paulo. Suas músicas falam sobre a maloca que foi pro chão, sobre a festa em que o amigo Arnesto não apareceu, sobre a quentinha do dia. É o sambo do trabalhador, da pessoa comum, que se vê nas letras de Adoniran. Serrano resgata e amplifica isso em Saudosa Maloca, colocando realidade e poesia na tela do cinema.
Paulo Miklos (O Homem Cordial) é o intérprete irretocável de Adoniran, esse senhor que, para um garçom de um boteco, relembra suas histórias. As lembranças se concentram sobretudo na época em que dividia uma maloca com Joca (Gustavo Machado) e Mato Grosso (Gero Camilo), além de também contar com a presença constante de Iracema (Leilah Moreno), que vive por ali.
Tal qual Mamma Mia!, as músicas vão se inserindo na trama e a trama vai se inserindo na música, em um processo de retroalimentação interessante de ver. Algumas funcionam mais (a história da Iracema, principalmente) enquanto outras vão mal (as piadas com Apaga o Fogo, Mané apagam o contexto trágico da canção). O fato é que os fãs vão se deliciar encontrando pequenas pistas aqui e acolá, enquanto Serrano esbanja apenas as músicas menos conhecidas de Adoniran, como Morro da Casa Verde, Filosofia (que é de Noel Rosa) e Vila Esperança.
No geral, esse formato funciona muito bem, principalmente por evocar um sentimento de uma radionovela. Essa costura entre histórias e músicas, com pistas aqui e acolá, ajudam a criar o sentimento de uma história perdida em um rolo de fita de rádio que ficou pra trás. Ainda mais com as brincadeiras em cena de Machado e Camilo, que sabem criar descontração na tela.
Fica o sentimento, porém, de que Saudosa Maloca não soube dosar comédia e drama em partes iguais. Não que fosse necessário fazer um dramalhão ou qualquer coisa do tipo, mas como o filme bem lembra no final, Adoniran era o palhaço triste. Esse sentimento de camaradagem e de piadas entre Joca e Mato Grosso acaba contaminando o filme e transformando-o em algo leve, às vezes até bobo demais. Falta ousadia para ir além e abraçar a tristeza que vivia em Adoniran.
Saudosa Maloca, porém, é uma agradável surpresa. Principalmente com o final, que arrebata e arrepia, trazendo uma celebração não apenas do trabalho de Adoniran Barbosa, mas também do que já foi São Paulo. O filme, assim, se encerra quase como uma memória, uma lembrança, que sabe olhar para o que aconteceu no passado com bom humor, mas mantendo o samba vivo.
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