Não é fácil assistir aos filmes do austríaco Ulrich Seidl. Dono de um estilo cru de filmagem, ele consegue transformar qualquer história banal numa verdadeira comédia involuntária do pior do ser humano. Foi assim com a sensacional trilogia Paraíso, com o bom Jesus, I Know e, agora, com o polêmico e provocativo documentário Safári, que chega às salas dos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 14, pronto para chocar e questionar.
O fio condutor da produção é um grupo de pessoas em uma reserva de caça no coração da África. Lá, elas possuem o direito -- se pagarem, é claro -- de caçar uma gama variada de animais selvagens, partindo de cervos, passando por gnus e zebras e indo até girafas e elefantes. É uma caça praticamente indiscriminada, onde essas pessoas -- todos ricos austríacos -- desembolsam uma fortuna para tirar a vida de animais e se divertir.
E Ulrich não tem medo de mergulhar nessa história. Safári começa relativamente suave, com um homem tentando caçar um gnu. Vai pra lá, vai pra cá. Dá um tiro, mas não acerta no animal. Até que atira no peito do bicho. E o homem, feliz com a conquista, corre para tirar fotos "instagramáveis" com o cadáver caído em solo africano e celebrar com seu cachorro, que encontrou o gnu morto. É incômodo, mas não surte grande efeito.
A coisa começa a tomar forma do cinema de Ulrich quando surgem os relatos e as entrevistas feitas com os tais "caçadores". Como faz muito bem, o cineasta os filma de forma crua e nos momentos mais bizarros possíveis, fazendo com que esses austríacos ganhem um ar bizarro indescritível. A partir disso, cria-se a grande questão que permeia todo o longa-metragem: são essas pessoas, tão estranhas, que matam animais selvagens?
É impossível não sentir um sentimento crescente de impotência, desconforto e desgosto. Ulrich, novamente, opta por não criar aparatos técnicos emocionais, como trilha sonora ou efeitos visuais. É, puramente, o retrato do ser humano, geralmente filmado no centro do enquadramento e em cenários que parecem oriundos de fotografias. E a intensidade das filmagens vai crescendo a cada história, a cada novo capítulo.
Há um momento, por exemplo, que o austríaco decide filmar o desmembramento de dois animais caçados. É duro de ver, quase voyeurista. É preciso ter estômago forte pra enfrentar o filme. Na sala em que estava, era fácil ver pessoas se contorcendo de nojo ou pavor, enquanto outras simplesmente tapavam o rosto. Eu, nesses momentos, preferi ficar olhando ao redor pra escapar do show de horrores que se desenrolava na tela.
O grande ápice de Safári, porém, é um repetição intencional do cineasta -- mas que custa alguns pontos positivos do filme. As entrevistas, reveladoras, entram numa espiral de repetição. A todo o momento, diferentes caçadores falam as mesmas coisas e as mesmas frases para legitimar o ato. "Esse animal era velho", disseram todos caçadores em todas as caças. Ou, ainda, "estamos fazendo bem para eles ao matar os doentes".
São coisas absurdas que, pela repetição, ficam claras que não condizem com a realidade -- uma girafa, por exemplo, era claramente líder de um bando e estava no ápice da vida. É a maneira que Ulrich encontrou aqui de deixar clara sua opinião sobre essa diversão anencéfala da sociedade. No entanto, como já sublinhado, isso acaba tirando um pouco da qualidade do filme, que apresenta uma estrutura saturada e previsível.
Ao final, porém, difícil não sair em choque de Safári. É o pior do ser humano, o mais pífio e caricatural, afetando a vida como sociedade e humanidade. É um tipo de cinema que Lars Von Trier sempre tentou alcançar, mas nunca conseguiu produzir. É uma mistura do conterrâneo Michael Haneke com a epifania social de Larry Clark. É cinema como deve ser: provocativo, incômodo e reflexivo. Safári não é o melhor de Ulrich, mas pode ser uma boa porta de entrada à esse estilo real e cruel de se fazer cinema. Vale a pena conhecer.
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