Logo na primeira cena, é possível fazer um paralelo entre o recente Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos com Pássaros de Verão, premiado filme colombiano que chega ao Brasil nesta quinta, 22. Afinal, mais do que falar sobre a rotina de aldeias indígenas, os dois longas se debruçam sobre transformações que acontecem na vida desses lugares e dessas pessoas. No filme nacional, a transformação é após a morte do líder da tribo e o consequente amadurecimento do protagonista. Já neste, mostra como índios colombianos se portaram frente à chegada do tráfico de maconha em seus cotidianos.
E é interessante ver como o paralelo desses dois filmes vai se cruzando. O visual, a forma de retratar os indígenas como protagonistas de suas histórias, e não sendo coadjuvantes dentro de suas aldeias. É um cinema latino-americano que só mostra toda a qualidade do que é feito no continente. E Pássaros de Verão, sem dúvidas, impressiona -- muito mais que Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, aliás. Aqui, Ciro Guerra (do oscarizado O Abraço da Serpente) e a estreante Cristina Gallego fazem um trabalho que beira a perfeição no desenvolvimento da história do indígena Rapayet (José Acosta).
Afinal, mais do que mostrar um momento único e solitário de transformação, o filme se propõe a fazer um estudo antropológico. Ao longo de suas 125 minutos, a história, escrita por Jacques Toulemonde (O Abraço da Serpente) e Maria Camila Arias (Candelaria), vai mostrando como a aldeia vai se transformando, em vários aspectos, frente à esse tráfico que chega na região. Com grandes saltos temporais, é interessante ver a transformação que o dinheiro traz aos personagens. Lembra um pouco a proposta de Ex-Pajé, mas não focando na religião. E sim na organização social dessa tal aldeia.
É uma proposta parecida com Cem Anos de Solidão. Apesar de ter um aspecto surrealista leve, a evolução da família parece ser escrita, às vezes, por García Márquez.
Apesar de não chegar a influenciar na trama, o visual também chama a atenção a cada frame. Seja o figurino, a fotografia ou a paleta de cores, tudo contribui para compreender melhor como aquela história se deu. É interessante notar, por exemplo, a cor destoante do personagem Leonídas (Greider Meza), o visual representativo do Peregrino (José Vicente Cote) e, principalmente, a forma como a sociedade daquela aldeia se transforma conforme os acontecimentos vão se desdobrando ali, bem na tela.
Vale ressaltar, também, um aspecto que melhora -- e muito -- a experiência com o filme. A maioria de seus atores são profissionais. Aqui no Brasil estamos vivendo, há alguns anos, um neorrealismo que emprega atores inexperientes e que interpretam suas próprias realidades na telona. É um recurso interessante, mas que funcionam só em alguns casos -- em Chuva é Cantoria, por exemplo, definitivamente não funciona. Indo contra essa maré da América Latina, Guerra e Gallego acertam com atores que vão de encontro aos seus complexos personagens de uma maneira realista impressionante.
A anciã Úrsula, vivida por Carmiña Martínez (Hábitos sucios), consegue mesclar a dor da transformação de sua aldeia com a experiência inerente que carrega. Natalia Reyes (O Exterminador do Futuro: Destino Sombrio) é um camaleão em cena como a esposa do protagonista, se transformando de maneira muito real de acordo com o avanço da trama. José Acosta, o protagonista, é o único ator inexperiente -- e isso fica evidente em alguns momentos. No entanto, ele carrega bem o personagem, trazendo complexidade.
No final, Pássaros de Verão fecha com chave de ouro ao trazer com franqueza a discussão sobre memória, tradição, misticismo e, principalmente, a influência do homem branco sobre os índios. É um filmaço colombiano que ficou dentre os últimos finalistas para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro -- e, injustamente, perdeu sua vaga para o fraco concorrente alemão. Bonito, bem atuado e com uma história impressionante e tipicamente latina. Pássaros de Verão, mais do que grandioso e de qualidade, fala sobre a América de hoje e de ontem. É um dos filmes do ano.
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