Elegante. Não há outro adjetivo possível para descrever a surpreendente estreia de Murilo Benício (visto recentemente em O Animal Cordial) na direção de um longa-metragem. Surpreendente, afinal, pois tudo conspirava contra o global. A adaptação escolhida para sua estreia foi da peça O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, que transpira teatralidade e que já conta com um filme cristalizado na história do cinema nacional -- com Tarcísio Meira, Ney Latorraca e Daniel Filho no elenco. Difícil dar seu primeiro passo no comando de um filme com todas essas sombras por trás da trama.
Mas Murilo Benício é ator. E um grande ator. E, assim sendo, soube driblar todas as adversidades que corriam contra sua produção. Seu primeiro grande acerto foi no roteiro, assinado por ele mesmo, que é bem trabalhado e inteligente. Benício não se conteve em apenas adaptar a história para as telonas novamente. Assim como no bom longa-metragem Ricardo III: Um Ensaio, de Al Pacino, a história se divide entre duas situações: o filme propriamente dito, com os atores encenando a peça escrita por Rodrigues, e a preparação do elenco para os personagens que vão interpretar no longa.
É uma conversa que, com outros rostos, poderia ser cansativa. Mas, aqui, é uma delícia de ser assistida por conta do segundo grande acerto de Murilo Benício no comando de O Beijo no Asfalto: a escalação de elenco. Nessa mesa, lindamente fotografada pelo excelente Walter Carvalho (Central do Brasil e O Filme da Minha Vida), conversa Lázaro Ramos, Débora Falabella, Stênio García, Augusto Madeira, Otávio Muller, Luiza Tiso e Fernanda Montenegro. E como uma espécie de preparador de elenco, Amir Haddad. É uma aula de teatro e atuação que se dá nessa conversa, costurada com a cenas no set.
Essa sacada de Benício, que causa estranhamento no começo, faz com que o texto de Nelson Rodrigues -- genial e ainda muito contemporâneo -- se faça presente, sem que a teatralidade o atrapalhe. Afinal, poucas adaptações de textos do dramaturgo funcionaram plenamente no cinema e na televisão, justamente, pela complexidade de seu texto e por seu aspecto de palco. Falas rápidas, cortes secos, diálogos afiados. Tudo aqui se manteve e o que Benício orquestra na tela é digno de aplausos ao final. Fica ali a força de Nelson e a beleza do cinema. Tudo junto, sem um anular o outro, como deveria ser.
O elenco, como já citado, está resplandescente em tela. Débora Falabella (Todo Clichê de Amor) encarna bem Selminha, outrora de Christiane Torloni. A inocência da personagem está ali, presente e viva. O mesmo vale para Luiza Tiso, a Dália, que faz uma estreia incrível em longas. Há a inocência da personagem, assim como a possibilidade de segundas intenções que rondam suas atitudes. Lázaro Ramos (Mundo Cão), Augusto Madeira (Bingo) e Otávio Muller (Benzinhos) estão magnéticos e conseguem mesclar a teatralidade de seus personagens com a força que o cinema exige em algumas cenas.
E que grandes atores são Stênio Garcia (o eterno Bino, de Carga Pesada) e Fernanda Montenegro, que dispensa apresentações. Garcia brilha quando seu personagem Aprígio, outrora interpretado por Tarcísio Meira, assim o exige. Alcança níveis raros de interpretação e que emocionam -- e, dessa maneira, alavanca o final do longa-metragem. Já Fernanda Montenegro tem uma única cena, apresentada na cena de leitura, e que arrepia pela transformação vista na tela. É incrível. Um monólogo final da atriz, dando sua visão sobre a obra, ainda que fora do texto, deixa tudo ainda mais forte e saboroso.
Pena, porém, que Benício não aproveita essas cenas de leitura de texto de maneira uniforme, ao longo de toda a produção. Conforme se aproxima do final, as inserções se tornam mais raras e predomina a interpretação. Durante coletiva de imprensa, o diretor e roteirista disse que fez isso para não quebrar o ritmo. Mas fica uma estranha ausência no ar durante o terceiro ato. Sem dúvidas, seria ainda mais forte e completo se Benício tivesse batido o pé e deixado essa primeira interpretação homogênea pela trama. No final, essa ausência acaba quebrando o ritmo cadenciado que era visto até então. Falta algo.
Ainda assim, O Beijo no Asfalto é uma estreia elegante, forte e surpreendente de Murilo Benício na direção. As dificuldades, listadas aqui anteriormente, foram sobrepostas e se tornam apenas uma vaga lembrança. É uma linda homenagem ao cinema, ao teatro, à Nelson Rodrigues e ao Brasil. Afinal, o longa-metragem desperta tantas emoções, reações e elucubrações que fica difícil não pensar nele por algumas longas horas. Grande filme nacional de 2018 que, certamente, deve aparecer dentro os melhores do ano.
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