É curioso como, às vezes, alguns filmes dialogam de maneira assustadora com a atualidade de quem os assiste. Não importa se a história se passa em épocas anteriores, outros países. Cultura, História e futuro dialogam sempre entre si, quase como ciclos. É o caso de Infiltrado na Klan, novo longa-metragem do cineasta Spike Lee (Faça a Coisa Certa, Malcolm X). Adaptado do livro homônimo, a obra acompanha dois policiais americanos que resolvem se infiltrar na rotina da Ku Klux Klan local.
A grande questão central é que Ron Stallworth (John David Washington), o policial à frente da investigação, é negro. O primeiro do Colorado. Assim, pra conseguir comparecer aos eventos da Klan e se integrar mais ainda à rotina de seus integrantes, ele precisa contar com a ajuda do colega Flip Zimmerman (Adam Driver) ao mesmo tempo que lida com um relacionamento complicado e com a intimidade que vai criando com o líder da Klan, David Duke (Topher Grace). Situação complexa, pra dizer o mínimo.
A partir daí, Lee cria uma trama com as marcas registradas que já caracterizaram seu trabalho: um humor quase involuntário, situações de crítica social e técnicas de filmagem estilizadas e particulares. Infinitamente melhor do que seus últimos trabalhos, como o chatíssimo Chi-Raq, Infiltrado na Klan não perde tempo em mostrar todas as suas qualidades. A direção de Lee está inspirada e, ainda que exagere no tom emotivo em sequências, consegue equilibrar sentimentos e criar vínculos sinceros com público.
Parte desse acerto está no elenco. John David Washington (Ballers) está inspiradíssimo e, pela primeira vez, chama a atenção na tela grande. Consegue mesclar humor e drama com naturalidade, sem perder a mão. Chances de indicação ao Oscar de Melhor Ator. Adam Driver (Star Wars: O Despertar da Força) não está em seu melhor papel, mas tem força cênica e cumpre o necessário. Laura Harrier, Topher Grace e Jasper Pääkkönen estão operantes em seus papéis e dão suporte para a trama fluir e se consolidar na tela.
A estética também salta aos olhos, com cores bem definidas ao longo da história e cenas que nascem clássicas, como os personagens de John David Washington e Laura Harrier quase levitando em direção à cruz da Ku Klux Klan. Emblemático e significativo.
Lee comete alguns excessos, como já ressaltado. Além de cenas demasiadamente emocionais, como um discurso do ator Corey Hawkins (Kong: A Ilha da Caveira), há um abuso de músicas e trilha sonora, não dando espaço para a trama respirar. Parece que, a todo o momento, o cineasta está querendo inflar as emoções com músicas. Além disso, a trama é repetitiva: Ron Stallworth fala com a Klan, Flip vai para os encontros e fala com os integrantes. Depois os policiais se reencontram e tudo começa do início.
Mas, ainda assim, o roteiro de Charlie Wachtel, David Rabinowitz, Kevin Willmott e do próprio Spike Lee acerta naquele ponto abordado no início do texto: sua atualidade. Por mais que seja repetitivo e tenha exageros potencializados por Spike Lee, ele consegue trazer discussões importantíssimas, como a violência contra a população negra, a marginalização dos mais pobres e o discurso supremacista de maiorias -- David Duke, líder da Klan no filme, é uma das pessoas que elogiou a postura de Bolsonaro. Pois é.
Infiltrado na Klan é um filme estiloso, bem atuado e importante. Equilibrado em suas emoções, deve atrair a atenção de diversos públicos e, inclusive, causar reações acaloradas durante sua conclusão forte e marcante por conta de sua ousadia narrativa e estilística. É um longa-metragem que mereceu o reconhecimento em Cannes e que, a partir da temporada de premiações em 2019, deve ser ainda mais relembrado, exaltado e elogiado. Acerto de Spike Lee, que estava precisando de uma produção consagradora como essa após fiascos seguidos. Lee está vivo, crítico e muito afiado. Vale a pena ver.
* Filme assistido durante a cobertura especial da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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