Sempre quando falamos de documentários aqui no Esquina, ressaltamos um importante fator: por mais que seja um produto fiel à realidade, jornalístico, este gênero de filme continua sendo cinema. Sendo assim, deve obedecer algumas regrinhas básicas da arte de fazer um filme, como o enredo, ápice narrativo e personagens. Infelizmente, porém, os documentários estão caindo num marasmo técnico e narrativo sonolento. Todos seguem a mesma fórmula de entrevista, entrevista, entrevista e algumas imagens de arquivo quando convém. Não há clímax, não há história, não há empolgação. De cabeça, dá pra lembrar apenas de Virunga, recentemente, que é filme de verdade. Resto é resto.
No entanto, finalmente, a Nat Geo consegue quebrar essa cadeia de produções formulaicas com um documentário excepcional. É Free Solo, longa-metragem documental que ganhou, merecidamente, o Oscar de Melhor Documentário em 2019, derrubando os fracos concorrentes RBG, Minding the Gap, Hale County This Morning, This Evening e Sobre Pais e Filhos. Afinal, mais do que retratar a vida do alpinista Alex Honnold, os diretores Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin se arriscam em contar uma história cheia de emoção, em detalhes, fazendo com que este longa documental seja ainda mais desesperador e bem filmado do que uma ficção poderia ser.
Como já citado, Free Solo acompanha a vida de Alex Honnold. Ele é um rapaz aparentemente convencional, que namora, tem amigos e uma profissão. E é nesse último quesito que as coisas viram de cabeça pra baixo. Ele é alpinista solista livre, que escala montanhas sem qualquer tipo de aparato de segurança. É tudo na unha. Qualquer deslize ou problema no meio do caminho, ele cai e morre. Não tem meio-termo, não há saída. É um esporte radical ao extremo, em que o erro custa a vida. E é nessa adrenalina constante, para o próprio Alex, para a namorada, para amigos e para pessoas ao redor de sua vida social, que o filme se debruça. Fórmula difícil de dar errado, ser entediante.
O fato é que Elizabeth e Chin sabem como filmar e sabem como contar essa história. Os planos de câmera são fabulosos, bem filmados e sempre calculados. Mais do que mostrar uma boa imagem para o espectador, a dupla de diretores precisa também ter o pensamento de como não atrapalhar Alex na escalada, nos treinos, nos preparativos. É tudo uma questão a ser meticulosamente calculada. E mais: o protagonista possui alguma questão de ordem mental. Provavelmente Síndrome de Asperger, segundo diz a mãe em determinado momento da gravação. Com isso, os relacionamento sociais ficam ainda mais difíceis. Parece que as gravações vão ser interrompidas a qualquer hora.
A dupla, que também assina o roteiro do longa, sabe construir a narrativa para deixar o espectador grudado. A ansiedade com a escalada final é crescente e atinge um ápice narrativo típico de dramas -- há vários personagens envolvidos, todos com alguma carga emocional, e prendendo tudo e todos numa única ação. É algo que deixa qualquer um angustiado. E aqui, há um ponto a mais: é a verdade nua e crua sendo relatada na tela. Se Alex cair, ele morre de verdade. Não há ficção no mundo que consiga passar essa carga de verdade ao espectador, por mais que ele saiba como vai terminar tudo ali.
A construção dos personagens também é acertada. Alex vai sendo apresentado em camadas, aos poucos, para que o espectador compre aos poucos todas as variações de personalidade que nele residem. Enquanto isso, a namorada de Alex, que funciona como uma personagem secundária, é excelente dentro da narrativa de Free Solo. Ela causa emoções naturais e dá o tom de emoção ao filme -- assim como um dos cinegrafistas, ao final do filme, que torce e sofre por Alex na montanha. É a "permissão" para que o espectador se sinta assim também. É um jeito natural e esperto de criar conexão.
Enfim. Free Solo é um filmaço. Poderia ter uns 10 minutos a menos, algumas pequenas mudanças de edição, mas nada que afete o resultado final -- que merecia ser apresentado na tela grande. No Brasil, porém, a saída é assistir a produção na canal pago da National Geographic, dia 9 de março, às 22h. É uma experiência surpreendente, complexa, completa e angustiante -- num bom sentido. Vale a pena assistir para entender o que é um documentário bem feito, de fato, e que vai muito além do relato. É cinema. E um cinema, aqui, que ficção nenhuma consegue chegar perto.
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