Grande parte do público pode não se interessar pela premissa inicial de Lembro Mais Dos Corvos, lançamento da Vitrine Filmes desta quinta, 21. Afinal, é uma espécie de monólogo, mais comum no teatro do que no cinema, que coloca a atriz Julia Katherine na frente das câmeras para falar de sua vida, de sua experiência como mulher transsexual, sua carreira e, claro, algumas ficções aqui e ali. No entanto, o resultado é mais do que satisfatório. Lembro Mais Dos Corvos é uma agradável surpresa de 2019.
Dirigido por Gustavo Vinagre, estreante em longas, Lembro Mais Dos Corvos se propõe a mergulhar numa noite de insônia de Katherine (revelação em Os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos), que precisa lidar com questões passadas sobre sua vida, sobre a sexualidade, o preconceito, a família e a vida de atriz e de cinéfila. São 84 minutos no qual ela fala quase sem parar, apenas com uma ou outra interrupção de Vinagre -- que fica escondido atrás das câmeras, apenas.
O que tinha tudo para ser enfadonho, porém, se torna interessante. Katherine tem o dom de contar histórias. É inebriante a forma que ela se comporta em cena e como fala sobre suas experiências -- algumas, aliás, são ficcionais e passam batidas. O apartamento, que é uma locação na casa do diretor, se funde com a personalidade da atriz. Tudo ali é muito natural. É difícil não embarcar na vida e nas histórias de Katherine, que tem seu nome como uma homenagem sincera à Katherine Hepburn.
Alguns elementos cênicos são usados para quebrar o ritmo verborrágico e apostar em sequências mais introspectivas, como as boas interações com a passarinha Nuvem e uma estranha sequência, que não chega a lugar algum, de Katherine usando um quimono. Há até uma breve reflexão no final, envolvendo uma discussão sobre alguma possível "exotificação" da mulher trans, mas que poderia ter sido levantada de outra maneira sem ser com o quimono. É o único momento em que a naturalidade some ali.
Mas, ainda assim, Lembro Mais dos Corvos impressiona. Indo na contramão do que é feito com a mulher trans no cinema, onde são colocadas apenas como vítimas, o longa de Vinagre dá espaço para Júlia contar sua história, sua visão de mundo. Há, sim, intersecções feitas pelo cineasta, mas todas coerentes e que dão liberdade para a atriz desenvolver suas ideias, seus pensamentos. Lembra de Uma Mulher Fantástica? Não é nada daquilo. É um filme que traz traumas, sim, mas em doses moderadas. Ela, a protagonista, está em primeiro lugar. Sua história, seus fatos, suas experiências. E só.
Vale destacar, também, o bom curta Tea for Two, que vem no encalço do longa, logo após os créditos. Dirigido pela própria Katherine, ele é citado durante o documentário-ficcional e traz uma trama sobre um triângulo amoroso envolvendo personagens vividas por Gilda Nomacce (A Pedra da Serpente) e pela própria Julia Katherine. O ritmo não é tão intenso e a história tem um quê de artificialidade. Mas o final é lindíssimo. Arrebatador. Completa, sem dúvidas, a experiência vista em Lembro Mais dos Corvos.
Enfim. É longa-metragem interessante, inesperado e que surpreende. Tem uns probleminhas de fotografia, que muda muito a coloração e a iluminação de um corte para o outro, tirando o espectador da situação. A edição também poderia ser mais elegante -- apesar de ser injusto cobrar tanto de um filme feito na "guerrilha", quase sem orçamento. Mas não dá pra fechar os olhos. Ainda assim, merece aplausos, reconhecimento e bilheteria. É um ato político, tão necessário em tempos sombrios.
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