Que filme mais profundo é First Cow: A Primeira Vaca da América, que enfim chega aos cinemas nesta quinta-feira, 3. Dirigido por Kelly Reichardt (do interessante Certas Mulheres), o longa-metragem é inspirado no romance The Half-Life, de Jonathan Raymond -- que, aliás, escreve o roteiro do filme ao lado de Reichardt. É um filme simples, em resumo, mas nunca simplório.
Afinal, veja só essa história: o cozinheiro Cookie (John Magaro, excepcional) é contratado por uma expedição, no longínquo ano de 1820, para ser o provedor de alimentos. É ele que caça, que prepara a comida, que serve. Durante essa expedição, no estado de Oregon, Cookie conhece King-Liu (Orion Lee), um chinês que está fugindo de um grupo de russos que deseja se vingar.
Eles logo despertam uma amizade sincera, espontânea. O cozinheiro ajuda o oriental a sobreviver em terras americanas, em um momento em que tudo é muito bruto. É um momento de sobrevivência. E é justamente buscando maneiras de sobreviver que os dois começam a roubar leite da única vaca da região, sob propriedade de um homem de posses (Toby Jones).
É um faroeste moderno, como o recente Deixe-o Partir também nos apresentou, com seu cenário árido, história brutal e personagens estranhos. Em um primeiro momento, parece só a história desses dois roubando leite e sobrevivente no oeste americano. Mas é mais do que isso. First Cow é um filme que fala sobre amizade e, sobretudo, sobre a vida no mundo capitalista.
Primeiramente, há toda a simbologia da ajuda mútua do americano com o homem chinês. Cada um tem um conhecimento, algo para contribuir. Quando atuam juntos, as coisas avançam. É um retrato quase impossível de ser observado na época que First Cow foi realizado, já que os Estados Unidos ainda viviam sob a sombra do governo Trump e da agenda contra a China.
Além disso, seguindo o mesmo passo, Reichardt traz olhares profundos sobre o sistema capitalista, com especial atenção para o self-made man americano. Cookie e King-Liu possuem conhecimento. Sabem como transformar aquele leite em dinheiro, em centavos de dólar. No entanto, não são eles que controlam os meios de produção. Ficam, assim, à mercê dos ricos.
É uma crítica singela, mas poderosa e profunda, que a cineasta e corroteirista faz sobre o sistema econômico vigente. Qual a saída? Embelezando isso tudo, ainda por cima, há o design de produção magnífico de Anthony Gasparro -- injustamente esnobado no Oscar de 2021. É uma recriação poderosa do século XIX, com atenção aos detalhes. A ambientação é um personagem.
Enfim: First Cow, que recebeu o bobo subtítulo de A Primeira Vaca da América no Brasil, é um filmaço. Daqueles sensíveis, que exige um mergulho em camadas mais profundas. Não é simples de entrar no clima do filme, tampouco em aceitar as ideias que Reichardt traz na tela. Mas o fato é que poucos filmes, em 2021, despertam tanto fascínio quanto este aqui.
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