Todo filme, por mais improvisado ou experimental que seja, possui um roteiro, uma narrativa, um objetivo geral. Afinal, se não tiver nenhum desses elementos, deixa de ser cinema e vira uma mera experimentação em vídeo -- que pode dar muito errado ou muito certo. O mesmo vale para documentários, que precisam ter algo pré-determinado sobre o que vai contar, como vai contar e com o que vai contar. Em Fevereiros, novo longa documental de Marcio Debellian, esses elementos estão presentes, mas de maneira tão frágil que a sensibilidade da história, aos poucos, vira ausência narrativa.
Para se ter uma ideia, é difícil dizer sobre o que é o documentário. Alguns podem dizer que é sobre a cantora Maria Bethânia. Mas fala-se muito pouco sobre sua vida, sua obra, sua trajetória profissional. Outro pode levantar e dizer que é sobre a religiosidade de Bethânia. Errado também. Vai além, mergulha na sensibilidade e busca unir temas como carnaval e religião. Algumas outras pessoas podem esquecer totalmente dessas possibilidades e ir direto para o argumento de que é uma análise sobre a mistura de Carnaval, a festa do povo, com a religião pulsante no Brasil. Mas e a Bethânia nisso aí?
O fato é que Debellian, do bom O Vento Lá Fora, faz uma mistura estranha e pouco óbvia de todos esses temas. Para isso, ele começa contando um pouco sobre a religião que sempre acompanhou Bethânia, junto com uma espécie de misticismo, para depois partir para duas festas importantes para a cantora e que acontecem em fevereiro: a lavação de Nossa Senhora, em Santo Amaro; e, é claro, o desfile anual e apoteótico da Mangueira, escola do coração de Bethânia. A narrativa, assim, tenta costurar esses temas numa só história, partindo da vida da cantora baiana e indo além. Muito além.
Há sensibilidade, é fato, na trama contada por Debellian. É bonito ver como as raízes das festas e das religiões se misturam, principalmente quando se fala sobre o povo preto. Bethânia, de certa forma, acaba assumindo um caráter de personagem frente ao que se desenrola na tela e fazendo a união personificado de tudo isso que está sendo contado. É bonito de ver, é bonito de pensar, é bonito de refletir. A brasilidade do documentário é evidente e fica claro que o cineasta está feliz em deixá-la evidente. E, afinal de contas, há algo mais brasileiro do que Bethânia no atual cenário da música brasileira? É difícil.
No entanto, a sensibilidade é tão exorbitante, e tão fora da curva, que se torna sensível demais. A linha narrativa, como ressaltado no início desse texto, fica tênue, frágil, quase invisível. Até determinado ponto da projeção, até é difícil compreender do que está sendo falado e muitas coisas simplesmente parecem perda de tempo -- a entrevista com Chico Buarque, com o carnavalesco e afins. As coisas só vão fazer sentido, de fato, mais pra frente, quando as três principais elipses da história vão se unir. Só que, até lá, o espectador provavelmente já está disperso, pensando em outras coisas e entediado.
Sensibilidade num filme é algo muito bom. Mas, quando em excesso, satura e estraga.
Muitas outras entrevistas, porém, fazem sentido e ajudam a dar uma noção geral sobre o assunto de Fevereiros. Caetano, principalmente, é o que entrega as melhores frases, assim como a irmã de Bethânia -- que família, Brasil!. O trabalho de pesquisa de acervo também é acertado, trazendo imagens interessantes e que não se tornam genérica para o todo. Há, por exemplo, uma passagem envolvendo Jorge Amado e Mãe Menininha do Gantois que é linda de se ver. Algumas imagens antigas da Mangueira, com Cartola, Nelson Cavaquinho e outros bambas, também emocionam e engrandecem a produção.
Mas, de novo: é complicado enfrentar um filme que, aparentemente, não possui objetivos narrativos claros. Não se torna um vídeo experimental -- longe disso -- mas acaba por ficar entediante. O que ajuda a alavancar a produção e torná-la satisfatória, pelo menos, é a boa fotografia, as boas imagens de arquivo, a excelente trilha sonora e, é claro, a presença magnética de Maria Bethânia -- que irá agradar, principalmente, os fãs da cantora de clássicos como Sonho Meu e Gostoso Demais. Pessoas que procuram sua biografia, uma boa história de carnaval ou religião, decerto, vão se decepcionar.
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