Em uma das primeiras cenas do drama italiano Entre Tempos, os personagens Lui (Luca Marinelli) e Lei (Linda Caridi) conversam sobre presente, passado e futuro. Em determinado momento, entram em consenso de que apenas os últimos dois são verdade. Já que o presente não pode ser efetivamente sentido, mensurado. Essa frase, enquanto você está lendo, leitor, já é passado. O último segundo também. O que é o presente, então, senão memórias que se amontoam? O presente, então, é recordação?
É sobre isso, e muito mais, que se debruça Entre Tempos, dirigido pelo talentoso Valerio Mieli (de Dieci inverni, que infelizmente não chegou no Brasil). De narrativa não-linear, o filme se vale da história de um relacionamento entre esses dois protagonistas para ir bem mais além. Por mais que o romance entre eles e o vai-e-vêm do amor sejam o foco, muito pode ser sentido no longa-metragem. A forma como as memórias somem e reaparecem, o encadeamento de pensamentos e até peças que pregam nas lembranças.
Tudo é tratado de uma maneira muito poética, leve, sutil. E é algo que não é fácil de ser feito: afinal, a memória, as lembranças e o tempo são coisas abstratas demais. Mieli, no entanto, consegue trazer todas essas emoções na tela sem se desencontrar com a narrativa dos casal de amantes. Pequenas reviravoltas surgem aqui e ali, assim como desenvolvimentos mais ousados de personagens. Tudo sempre servindo ao propósito de mostrar o funcionamento de uma lembrança, uma memória. É lindo de se ver na tela.
Mieli, que também escreveu o roteiro, tem umas boas sacadas no sentido da ação do tempo sobre a vida das pessoas. Sem nunca estabelecer exatamente o que é passado, presente e futuro, fazendo coro ao que os protagonistas falam no início, o cineasta traça os efeitos que pequenos atos exercem na vida das pessoas. Alguns são doloridos, outros arrancam sorrisos. Não há visão romantizada sobre o que é contado, nem exageros. A história de Lui e Lei é universal, transpassando tempo, localização e idade.
Atenção às texturas, respiração, toques. Tudo isso, que Mieli explora no longa, vai dando familiaridade. A reação do protagonista ao ver o apartamento de infância universaliza a memória e o sentimento. As histórias contadas, lembradas de um jeito diferente por cada um do casal, mostra a fragilidade das lembranças. A confusão inicial com o que é presente, passado e futuro exemplifica a confusão temporal que atormenta todos nós.
Por mais que o segundo ato do longa-metragem seja mais extenso do que deveria, perdendo um pouco da atenção do público, não é algo que realmente prejudica. Afinal, a dupla de atores, que segura a produção quase sem coadjuvantes, está afinada e tem química. Luca Marinelli (do fraco Uma Questão Pessoal) faz bem o tipo atormentado e que não sabe lidar bem com algumas memórias -- o romance passado não resolvido, as máculas guardadas. Sua interpretação é potente, forte e visceral. Entra no personagem.
Enquanto isso, Linda Caridi (Mamma + Mamma) emprega leveza à sua personagem. Ela é o complemento ideal para o que Luca traz na tela, complementando o que a audiência precisa. Torna o filme mais gostoso de ser assistido, com boa complementaridade.
Entre Tempos, assim, é uma das grandes surpresas de 2019. Surge silencioso, como um drama romântico italiano, mas acaba assumindo a forma de algo mais poderoso, interessante e provocativo. A emoção ao final, quando o espectador também é convidado a mergulhar em suas memórias e temporalidade, é quase implacável. O sorriso no rosto se mistura com as lágrimas. E esta bela produção mostra como pequenos filmes, que surgem às vezes desconhecidos por aí, conseguem surpreender e trazer sentimentos quase adormecidos. Vale a pena ver no cinema, pra sentir tudo isso na sala escura.
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