No começo de Entre Mulheres, o público tateia a história no escuro. O cenário parece saído de um filme de época. Século XVIII, talvez? Afinal, a cidade em que se passa o filme é bucólica e as mulheres que ali se apresentam, conversando em um celeiro, estão com roupas de algumas décadas atrás. O conflito estabelecido por Sarah Polley, diretora e roteirista, também é nebuloso: elas foram agredidas e, agora, precisam decidir o que fazer. Entram em conflito com os homens ou partem? Essa é a discussão de Entre Mulheres, estreia desta quinta-feira, 2, nos cinemas.
Essas dúvidas todas, que surgem rapidamente e vão se dissipando lentamente, são propositais. Entramos na história pós-agressões -- essa violência, afinal, nem merece ser fotografada. O que Polley quer mostrar é a reação, a luta. Essas mulheres, mesmo privadas da escrita, da leitura e de sua própria voz, resolveram dar um basta, um chega, e estão definindo qual caminho seguir. Algumas são mais reativas, outras mais racionais. Mas, aos poucos, o cenário vai se construindo e a discussão, que lembra algo de um 12 Homens e uma Sentença, vai sendo solucionada.
O fato é que Entre Mulheres, como o título original (Women Talking) já sugere, não traz ação e movimento, mas pensamento, conversa e reflexão. Não vou entrar em detalhes sobre como estão a vida de Ona (Rooney Mara), Salome (Claire Foy), Mariche (Jessie Buckley) ou Greta (Sheila McCarthy), tampouco explorar essas questões que levantei anteriormente. A surpresa de descobrir isso faz parte da experiência dolorosa. Essas mulheres estão resistindo, mas a dor do passado as acompanha e deixa uma ferida aberta, que parece cicatrizada apenas em poucas.
O longa, indicado ao Oscar de Melhor Filme, é lento, contemplativo e bastante estético. Polley, ao lado de Luc Montpellier, diretor de fotografia, cria uma estética quase estéril. Tudo é muito cinza, às vezes exageradamente branco, mas, ainda assim, muito escuro. As personagens, afinal, estão conversando à sombra, escondidas, tentando decidir seus futuros rapidamente enquanto o algoz está lá fora, resolvendo coisas de algozes e sem se preocupar que a presa possa estar pensando em escapar daquela situação de violência sistêmica. Não tem como ser um filme claro.
Nessa estética, Polley já traz muito de seu discurso. Diz muito sobre as personagens e versa sobre o que é ser mulher. A confusão temporal, afinal, não é à toa: além de criar o choque quando descobrimos o ponto onde o longa-metragem está situado, o filme também provoca o espectador. Mostra como nós, do outro lado da tela, vemos como aquela história poderia se passar simplesmente em qualquer tempo (ontem, hoje ou amanhã). É um sistema de supressão mecanizado, calcado em mostrar como o séc. XVIII é agora e pode continuar sendo amanhã.
As conversas entre mulheres, que se desdobram em um único cenário, tem algo de teatral: assim como em A Baleia, outro filme com indicações ao Oscar 2023, as situações chegam e vão embora. Ficamos reféns daquelas discussões que nascem e morrem com relativa rapidez, mas que sempre circundam ao redor de ficar ou partir. A dialética toda da coisa é elegante e Polley se preocupa em nunca colocar as personagens umas contra as outras, focando principalmente na forma como uma mesma ideia é debatida, até que haja uma união ao redor disso.
Assim, o elenco de Entre Mulheres acaba sendo um dos maiores pontos de destaque. Foy (The Crown), Buckley (Estou Pensando em Acabar com Tudo) e Mara (Os Homens que Não Amavam as Mulheres) são os destaques absolutos, mas não os únicos nomes a terem bons momentos na tela. Atrizes como Judith Ivey (Advogado do Diabo) e a ótima Sheila McCarthy (Duro de Matar 2) também conseguem criar vínculos com o público do outro lado. Também há de se destacar Frances McDormand (Três Anúncios para um Crime), que está bem, mas aparece muito pouco.
O fato é que esse elenco consegue, com poucos cenários, fazer algo que não é simples: dar profundidade à trama. Enquanto as personagens não deixam o discurso tomar frente ao que é dito entre mulheres, o texto acaba sofrendo um pouco com essa ampla gama de atores em um cenário tão reduzido. Há momentos de brilho para todos, mas acaba sendo difícil desenvolver a personalidade de cada um. E é aí que entra o brilhantismo do elenco: com gestos, falas e pontuações corporais, demarcam melhor quem são, o que pensam e o que estão passando.
Entre Mulheres, assim, é um filme difícil, seja pela força do tema ou pela singularidade na forma em que tudo é contado, com muitos silêncios, situações descobertas pela metade e coisas do tipo. Mas, quem chega ao final, sem dúvidas é recompensado com uma produção fortíssima e que é uma das mais originais e interessantes do Oscar. Ah, e aviso: assista sem saber muito.
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