No Oscar de 2019, um longa-metragem sueco passou injustamente batido para grande parte das pessoas. Foi Border, filme que concorreu na categoria de Maquiagem e Penteado, perdendo injustamente para o mediano Vice. Dirigida por Ali Abbasi (Shelley), a surpreendente produção acompanha a história de Tina (Eva Melander), uma fiscal da alfândega que tem um sexto sentido para identificar contrabandistas. Como? Ela "fareja" as emoções da pessoas, como medo, apreensão, angústia e vergonha, por exemplo.
Só que ela acaba encontrando uma barreira ao se deparar com Vore (Eero Milonoff), um homem de aparência pouco comum, parecido com a protagonista, que consegue esconder suas emoções -- ainda que Tina sinta que tem algo de estranho ali. A partir desse conflito, porém, acaba nascendo uma estranha e intensa relação entre os dois, que acabam descobrindo uma sexualidade e emoções que, até então, estavam totalmente adormecidas. É uma mistura interessante de drama, romance e fábula.
Border, logo de cara, tem uma genialidade admirável: o modo como lida com o diferente. Abbasi faz com que Tina seja uma pessoa estranha ao seu meio, mas que soube encontrar espaço na sociedade, por mais que ainda seja discriminada cotidianamente. É interessantíssimo, e um exercício complexo, entrar na realidade dessa personagem, tão bem vivida por uma irreconhecível Eva Melander (O Hipnotista). Difícil lembrar de outra personagem tão interessante, cativante, complexa e original do cinema recente.
A coisa fica ainda mais provocativa, porém, quando o personagem de Eero Milonoff (Ganes) entra em cena. Mais estranho, bizarro e obscuro que a protagonista, Vore proporciona um tempero a mais de fábula na produção, que até sua entrada definitiva apresentava um drama. Abbasi, porém, continua tratando tudo com uma realidade desconcertante. Uma cena de sexo entre os dois personagens, aliás, é histórica. Estranha, bizarra, brutal, intensa. Deixa qualquer um se mexendo na poltrona da sala.
É o que A Forma da Água tentou ser, mas acabou suave demais. É o que a Netflix tentou fazer com Bright, mas acabou pop demais. É o acerto de algo que muitos erraram.
A trama, escrita por Abbasi, Isabella Eklöf (Holiday) e John Ajvide Lindqvist (autor do livro original e escritor de Deixa Ela Entrar), possui um ponto interessante que é a crescente inserção da fábula em Border. Começa apenas com esse sexto sentido da protagonista, passa para a estranha relação com Vore e chega até subtramas intrincadas sobre uma espécie provindas de fábulas e a perpetuação da espécie. É algo que pode -- e deve -- causar estranheza, fazendo com que muitos não se sintam totalmente confortáveis com o que está sendo contado na telona. Não funciona à todos.
O melhor, porém, é o significado que a relação entre Vore e Tina. O uso de personagens de fábulas é apenas um pretexto para falar sobre o comportamento do diferente perante a sociedade. Alguns lidam com ódio, outros com dedicação. Alguns internalizam, outros explodem. O que está correto? O que é ético, aceitável? É uma discussão natural, que surge naturalmente, e que faz muito sentido numa sociedade tão xenófoba e intolerante ao diferente como a que vivemos agora. Reflexão importante e que surge criativamente.
O próprio filme, aliás, é o diferente em meio a um mar de produtos iguais e plastificados. Vive-se, atualmente, na indústria do consumo completa, onde sequências, reboots e remakes dominam grande parte dos lançamentos. Abbasi se assume como um diretor diferenciado e coloca o filme no mesmo caminho. Merecia ter sido indicado em Melhor Filme Estrangeiro. Pena que a competição tenha sido tão dura com os excelentes Roma, Cafarnaum, Guerra Fria e Assunto de Família. Em outros anos, estaria facilmente entre os cinco escolhidos. Ou, até mesmo, levaria o prêmio pra casa.
Pena que o roteiro dê uma leve escorregada numa trama envolvendo um casal e o filho recém-nascido. Eles, assim como uma rede de pedofilia, servem para conduzir a trama para o final, triste e ainda mais reflexivo. Só que falta um pouco mais de atenção para essa história e esses personagens secundários, que acabam totalmente desperdiçados. Acaba com pontas soltas, fragilizando uma narrativa que tinha tudo pra ser obra-prima.
Ainda assim, Border é um dos filmes do ano. É ousado, criativo, original, emocionante. Traz uma boa mensagem de forma original, sem soar piegas ou criativa. Uma diamante belamente lapidado em meio a tantos filmes medianos indicados ao Oscar de 2019, como o esquecível Vice, o problemático Bohemian Rhapsody, o chatíssimo Duas Rainhas e o polêmico Green Book, que levou o prêmio máximo. Aos que prezam pelo bom cinema, original, ousado e provocativo, Border é filme necessário. Vale a pena.
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