Logo no começo de Boas Intenções, novo filme do cineasta Gilles Legrand (A Menina e os Lobos), a protagonista Isabelle (Agnès Jaoui) tenta explicar, para um grupo de refugiados na França, o que é estereótipo e o que é preconceito. Ela não é muito feliz na sua colocação, já que o grupo parece terminar mais confuso do que começou. E essa cena, por incrível que pareça, é sintomática sobre o que o restante do filme irá apresentar.
Dirigido por Legrand e roteirizado por ele e por Léonore Confino (L'art de la fugue), o longa-metragem dá um show de preconceito ao apresentar um grupo de refugiados, das mais diversas etnias, tendo aula de francês com essa protagonista interpretada pela veterana Jaoui (que dirigiu o recente Praça Pública). Ao invés de fazer um estudo do hábito de cada uma dessas origens e etnias que forma esse grupo diverso, a dupla de criadores opta por reproduzir ideias genéricas. O brasileiro só pensa em samba e carnaval, a francesa analfabeta não sabe responder uma simples pergunta e a moça búlgara rapidamente é seduzida pelo professor de direção e engata um relacionamento.
Assim, o que começa como uma divertida comédia sobre uma mulher que não consegue deixar o seu lado humanitário de lado, vai se transformando num filme de muito mau gosto. Eu, como brasileiro, senti-me ofendido pela maneira que retrataram o rapaz brasileiro que nem ao menos sabe distinguir as cores de um semáforo de trânsito. Não há dúvidas de que as outras etnias ali representadas devem ter sentido algo parecido. Legrand coloca os franceses como donos do mundo, da verdade e de toda sabedoria. O resto se comporta apenas como animais precisando de algum tipo de domesticação.
O pior disso tudo é que o elenco é formado, de fato, por refugiados e/ou estrangeiros -- usam, inclusive, os próprios nomes. É triste notar que é bem capaz que essas pessoas nem ao menos tenham percebido no que caíram. A vergonha toma conta ali. A tentativa de desconstrução é o brasileiro não ter gingado, a árabe ser mandona... Mas do que adianta se não vai além? Pior: do que adianta se outros preconceitos são reproduzidos?
O resto do filme é um marasmo de ideias. Afinal, ele se divide em dois núcleos: o de Isabelle dando tais aulas e enfrentando a concorrência de uma nova professora; e outro dela tentando lidar com a família, enquanto fica cada vez mais obcecada pela ajuda humanitária. Como já dito, o primeiro núcleo falha pelo preconceito idiota que tenta ser transformado em humor. Já o segundo falha pela falta de originalidade. É a velha história da pessoa que não consegue dissociar seu trabalho da família. Ou, ainda, aquela história da pessoa que consegue ajudar todos ao seu redor, menos si próprio. Deu, né?
Assim, o filme não traz nada de novo. Nenhuma boa reflexão, nenhuma história nova e interessante. O foco, que aqui poderia ser o ensino para imigrantes, não funciona. A vida da protagonista não é bem explorada. Acaba virando um verdadeiro tiro no vazio.
Boas Intenções pode até ter nascido, de fato, a partir de boas intenções de Legrand. Mas o resultado chega a dar vergonha. Não conseguiram dissociar o humor, o preconceito e alguma crítica social que afunda nesse mar de situações equivocadas. E num momento em que o mundo vê uma onda de refugiados cada vez mais forte, é inacreditável que alguém reproduza o discurso, no CINEMA, de que os moradores originais de um País sejam civilizados, educados, inteligentes e que os estrangeiros sejam bárbaros, burros, incapazes. Um filme desse não deveria nem chegar ao Brasil. Falta mais respeito.
* Filme assistido durante a cobertura especial para o Festival Varilux de Cinema Francês 2019.
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