Inicialmente, As Herdeiras parece um filme sobre uma sociedade ruindo. Afinal, o centro da trama recai sobre duas mulheres casadas que sempre viveram da herança que as suas famílias deixaram. O problema é que esse dinheiro começa a rarear e não há mais meios de viver confortavelmente. O jeito é dar um "jeitinho" de pagar menos imposto pro governo, vender alguns dos móveis da casa e contar com a ajuda de amigos e parentes.
No entanto, conforme o tempo passa e a situação na tela vai se desenrolando, percebe-se que o diretor Marcelo Martinessi tinha muito mais história para contar. Dono de uma sensibilidade autêntica, o cineasta acaba por contar uma trama forte, real e extremamente feminina sobre Chela (Ana Brun), uma das duas herdeiras que se vê completamente só após a esposa, Chiquita (Margarita Irún), ir presa por fraude fiscal.
Assim, mais do que contar a trama de duas mulheres que se veem falidas diante de uma sociedade consumista, o longa-metragem foca no desenvolvimento social e humano dessa personagem central -- principalmente no que concerne da libertação feminina e sexual -- que tenta encontrar um lugar ao sol após a partida da parceira. É um estudo delicado e metafórico de uma personagem que vai se desnudando em tela.
Muitos podem argumentar que não é papel de um homem contar tal transformação. Mas, como já sublinhado, o estreante em longas Marcelo Martinessi sabe o que está fazendo. E, como o cinema já cansou de provar, não tem gênero. Filmes femininos, há muito tempo, deixaram de ser sinônimo de peças delicadas, amorosas e por aí vai. Agora é como deve ser: apenas estudos e mergulhos na mente de mulheres, deixadas de lado por anos na produção fílmica da sociedade patriarcal na qual vivemos.
Além disso, mais do que Martinessi, quem conta a história é a paraguaia Ana Brun -- que, aliás, venceu o Urso de Prata de melhor atriz do Festival de Berlim de 2018. Ela tem um domínio em tela absurdamente real, forte e vigoroso. Conforme sua personagem vai encontrando um lugar na sociedade, sua postura física vai mudando e ganhando novos contornos, assim como a maneira de se vestir, de falar e, claro, de se relacionar.
Margarita Irún e María Martins, que interpreta a amiga rica do casal central, também estão bem e ajudam a história a se desenrolar na tela de maneira fluída. Mostra como o cinema paraguaio merece, cada vez mais, destaque e maior atenção na tela grande.
Mas o grande ponto alto é como as imagens em As Herdeiras falam por si só. Não apenas no que concerne ao elenco principal, mas também na ambientação de suas personagens e no modo de filmar a história. Martinessi quase sempre deixa apenas personagens femininas em cena, fazendo com que os pouco e eventuais homens se tornem apenas uma sombra desfocada. As ausências também dizem muito, como a falta de quadro nas paredes, a falta de contato entre Chela e Chiquita e por aí vai.
Há que se dizer, é claro, que essa ausência, em alguns momentos, acaba tomando uma força narrativa maior do que a audiência pode prever ou se preparar. Fica descontrolada. Isso acaba por tirar certa força narrativa da história, que deixa algumas coisas no ar e não se resolve. É bom deixar a audiência entender o que está rolando na tela por si só, mas não de maneira tão atrapalhada e pouco densa. Mais atrapalha do que ajuda.
As Herdeiras, então, é um mergulho delicado, profundo e muito artístico na mente de uma mulher real, que pode ser como centenas de milhares ao redor de todo o mundo. E o mais importante: faz refletir sobre liberdades e direitos numa sociedade que os cerceia cada vez mais. E olha só: no final, não é que As Herdeiras é, de fato, um filme sobre uma sociedade ruindo? Só que, ao invés do dinheiro, o foco é a alma humana. E isso não tem preço.
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