Armadilha começa já a mil por hora, com uma proposta de narrativa que choca – e chocaria mais ainda se não estivesse tão clara em todo o material de divulgação: Cooper (Josh Hartnett), o protagonista do filme, é um assassino serial que está preso em uma emboscada. Enquanto está com a filha em um grande show de uma cantora de sucesso (Saleka Shyamalan, filha do diretor), policiais fazem uma varredura no local. Sabem que ele, conhecido pelo codinome de Açougueiro, está por ali, a poucos passos de ser preso.
Estreia desta quinta-feira, 8, Armadilha é um filme relativamente diferente do que estamos acostumados com o cinema de Shyamalan: aquelas grandes reviravoltas finais são deslocadas já para o começo, colocando o protagonista em uma situação bem complicada.
O filme, como um todo, é uma corrida de gato e rato. Cooper precisa escapar. Ele, que é um serial killer metódico, caiu na emboscada e não tem como passar por uma revista final. Shyamalan move, assim, o foco da narrativa tão batida: ao invés de acompanharmos o que os policiais estão fazendo para capturar um serial killer extremamente perigoso, vemos como esse homem, que já matou meia dúzia de pessoas, vai fazer para escapar livre dali.
A primeira meia hora de filme causa uma confusão sensorial (e até mesmo moral) no espectador. Por mais que saibamos que esse homem é um criminoso, é instintivo torcer para que ele se safe. Você acompanha cada uma das possibilidades de escape, pensa em possibilidades com o protagonista. As coisas ficam confusas e esse é o maior mérito de Shyamalan: a reviravolta não está em um plot twist final, mas na forma que toda a narrativa – escrita pelo próprio cineasta, após dois filmes adaptados de livros – se desenha.
A partir disso, Shyamalan tece alguns comentários curiosos sobre esse personagem improvável. Ao contrário do que fez Lars Von Trier em A Casa que Jack Construiu, onde acompanhamos um serial killer cometendo seus crimes, Armadilha deixa esse mundo violento sendo visto por meio de uma tela de celular. Há distanciamento – e isso, claro, é proposital para que possamos compreender Cooper como um homem comum.
O principal ponto aqui, e que traz o segundo maior acerto do filme, é colocar Cooper como um pai preocupado. Oras, aparecem algumas oportunidades no caminho para que o assassino escape – no entanto, teria que deixar a filha à mercê, sozinha. Não consegue. Não pode. Ele se preocupa com a garota e, mesmo tendo feito picadinho de pessoas, está ali por ela, para ela. Há uma lógica hitchcockiana nisso tudo, colocando a forma em função da história. Não há grandes desenvolvimentos por aqui, mas sim uma tensão macabra.
Nessa preocupação com a filha, além da necessidade de conhecer e entender o espaço, Cooper vai mostrando suas fragilidades. Está longe de ser um serial killer perfeito. É perfeccionista, mas não consegue pensar em tudo, resolver tudo. Comete erros, derrapa em pequenas bobagens. Não escapa por amor, parece querer escapar por sadismo. As pessoas ao seu redor filmam o show, enquanto ele olha o sequestro da vez no celular.
O filme está em uma crescente interessante quando Shyamalan comete o principal erro: colocar a própria filha, Saleka, em evidência. Além de ser fraca, a atriz está refém de um papel sem qualquer propósito e conexão com a realidade. Há quem aponte que o universo de Armadilha escapa tranquilamente de convenções realistas, até se aproximando do mundo Corpo Fechado, Fragmentado e Vidro. Ainda assim, fragiliza a trama como um todo.
A nova dinâmica familiar, com pai, filha e a cantora de sucesso, causa uma aura de incredulidade muito grande. No cinema, em várias cenas deste momento, houve pequenos risos aqui e ali – ninguém se conformava com as coisas que aconteciam facilmente na tela.
Afinal, até aquele ponto, Shyamalan estava valorizando muito mais a forma do que o conteúdo, a mecânica do que a história. Quando mudam os níveis de poderes, e novos elementos entram na trama, a brincadeira de gato e rato vai se esvaindo e perguntas começam a ser jogadas no ar: como isso tudo aconteceu? Por que ele agiu assim, com tantos erros? Por que ele não fez isso, não fez aquilo? De onde surgiram as pistas? Como a polícia está conseguindo checar quem é o assassino? Só procurando uma tatuagem?
Ao abandonar essa exaltação da fórmula, e se afastar um pouco de Hitchcock, Shyamalan cria um rio de problemas para si no filme. Não só na atuação frágil de Saleka, como na necessidade de responder coisas demais. O filme, que até então era pura emoção e sobrevivência, fica estranhamente racional. No terço final, até tenta recuperar um pouco dos sentimentos iniciais, mas parece tarde. A emoção do público fica parcialmente contaminada.
Shyamalan tem uma carreira dividida entre amor e ódio, paixão e desespero. Há quem diga que formou a cinefilia com O Sexto Sentido e Sinais, outros que tiveram a maior decepção em um cinema com O Mestre do Ar ou até A Vila. Armadilha ressalta isso tudo: é um filme que vai (e já está) dividindo opiniões.
Não é perfeito. Mas o que vale, no final, é a emoção que fica, o sentimento registrado nesses 100 minutos. Os erros estão ali, os acertos também. O que fica, enfim, é a memória do que Armadilha quer dizer algo e que Shyamalan, no fim das contas, continua sendo um cineasta que quer que a gente, do outro lado da tela, saia do cinema sentindo alguma coisa – boa ou ruim, isso não importa mais.
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